Angel Hernández sai em liberdade depois de prestar
depoimento por
um crime de cooperação ao suicídio. (Foto: Carlos Rosillo).
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 12 de julho de 2019
Um milhão de assinaturas para descriminalizar a eutanásia na
Espanha
Três iniciativas cidadãs levam nesta sexta-feira ao
Congresso dos Deputados os apoios obtidos na plataforma Change.org para uma lei
de morte digna
Por Carmen Morán Breña
Em plena luta política e sem um Governo à vista desde as
eleições gerais de 28 de abril, os cidadãos querem falar com os políticos e o
fazem apresentando nesta sexta-feira no Congresso um milhão de assinaturas para
descriminalizar a eutanásia. O médico Marcos Hourmann obteve mais de 600.000
apoios na plataforma Change.org para que o Ministério Público não apresentasse
uma acusação contra Ángel Hernández, que ajudou sua mulher, María José
Carrasco, a morrer com um preparado letal, como ela lhe pediu. A esclerose
múltipla que Carrasco sofria quase já não lhe permitia engolir o líquido. Txema
Lorente viu morrer a mulher, que tinha a doença de Alzheimer, sem poder cumprir
a promessa que fizera de oferecer-lhe um final digno quando já não reconhecesse
os seus. A coleta de assinaturas que essa família começou conseguiu mais de
374.000 apoios na mesma plataforma. E a viúva de Luis de Marcos, María Asunción
Gómez, acrescentou a vontade de 99.000 outras pessoas para o mesmo objetivo.
A eutanásia é um desses casos em que a sociedade está à
frente da política. As pesquisas nas últimas décadas são inequívocas, cerca de
84% da população mostra o seu apoio a regular a morte desejada. O último
Sociômetro do País Basco [série de estudos iniciada em 1996 que procura fazer
um retrato da realidade social basca], o mais recente, apontou 86%. “O apoio
permanece estável ao longo do tempo, é transversal às ideologias, com apenas um
degrau quando se trata de crenças religiosas. Isso nos diz que a sociedade
amadureceu a ideia de que quer alcançar esse direito de saída”, diz Rafael
Serrano del Rosal, pesquisador do Instituto de Estudos Sociais Avançados do
CSIC.
Durante o período da Transição espanhola se falou do “direito
de entrada” quando se regulou o uso de anticoncepcionais para decidir trazer ou
não alguém ao mundo. Quarenta anos depois, o “direito de saída” não encontra
seu lugar no Congresso. O PSOE apresentou em 2018 uma lei para a
descriminalização da eutanásia que o Cidadãos bloqueou na Mesa do Congresso. “O
que queremos agora é que a lei siga em frente. Qualquer lei que sair será um
avanço. Se descriminalização é casuística, deixará gente fora, mas será um
avanço. A lei apresentada pelo PSOE contemplaria o caso da nossa ama [mãe em
basco], mas como digo ao vizinho que ele não pode morrer porque não está tão
mal quanto a minha ama? Tampouco contempla os casos existenciais, a pessoa que
está bem, mas que um dia quer morrer porque sim. Esses casos ficam de fora e
queremos que seja respeitado o motivo de cada um para abandonar a vida, mas nos
basta que se aprove a lei apresentada, será um avanço. Se cada partido
apresentar a sua todas seriam diferentes e não avançaríamos nunca”, diz David
Lorente, filho de Maribel Tellaetxe, que morreu em Portugalete em 6 de março.
Apesar do amplo apoio social, os partidos têm dificuldade de
falar sobre esse assunto. O argentino Marcos Hourmann, o primeiro médico a ser
condenado na Espanha por praticar a eutanásia se queixa disso. Ele foi
condenado a 10 anos de prisão, mas conseguiu se livrar. A família da falecida o
apoiou. Corria o ano de 2005. “E aqui continuamos, nestes dias os de esquerda e
de direita andam brigando, mas nos acordos de que falam para montar Governo
esse assunto nem é mencionado, nem o nomeiam. Já sabemos que é verão, mas
decidimos que nessa instabilidade política era bom apresentar as assinaturas
para colocar o dedo no olho para que os políticos deixem de brincadeiras”.
Hourmann começou a recolher assinaturas para que Ángel
Hernández não fosse processado por ter ajudado María José Carrasco a acabar com
sua vida. Seu caso está agora em um tribunal de violência de gênero à espera
que se determine o que aconteceu, pois foi gravado um vídeo em que a doente,
com as faculdades físicas muito deterioradas, confessa com absoluta clareza seu
desejo de acabar com sua vida para que o marido, que cuidou dela em todos os
momentos, não fosse incriminado. Ele passou a noite na cadeia, onde recebeu o
apoio explícito dos guardas que o custodiavam. Ele contou isso de manhã ao
sair. Esse caso, que aconteceu semanas antes das eleições, provocou um rebuliço
eleitoral que passou algumas horas depois.
“A eutanásia entrou no âmbito da disputa política, não no
dos direitos e necessidades dos cidadãos. Algum partido decidiu que era ‘a
favor da vida’ e os outros tinham de se colocar ‘a favor da morte’. E dessa
forma grosseira a questão foi abordada, apesar do apoio popular que suscita”,
diz Rafael Serrano del Rosal, que é, também, presidente da Rede de Pesquisa
sobre o Fim da Vida, uma organização multidisciplinar na qual filósofos,
médicos e sociólogos debatem e estudam o assunto. Ele diz que esse medo de
abordar a questão, também entre os cidadãos, se deve ao fato de que o assunto
se presta a um ataque fácil, vulgar. “É suficiente para acusá-lo de que você
não quer cuidar dos seus ou que, se essa porta for aberta, logo virá a eugenia
para acabar com os seres que nos incomodam”. Os estudos empíricos, eles
existem, mostram que não é assim, diz del Rosal. “Tampouco as pessoas irão em
massa para que lhes pratiquem a eutanásia, como dizem alguns. Já se viu na
Bélgica que não é assim, um país em que foi legalizada há tempos. Existe gente
que sofre e existe gente que simplesmente não quer estar, e isso afeta ricos e
pobres. María José Carrasco tinha recursos, mas chegou uma hora em que
simplesmente não queria continuar”, diz o pesquisador.
Por último, a associação pelo Direito de Morrer Dignamente
(DMD) também apoiará a iniciativa no Congresso nesta sexta-feira porque “por
trás de cada testemunho que sai nos meios de comunicação e que comove todo
mundo há milhares de casos que permanecem na obscuridade, porque não querem vir
à luz ou porque planejam organizar sua morte da maneira mais digna possível’,
diz Fernando Martín, da DMD.
Mitos sobre a eutanásia
Existem falsos mitos sobre a eutanásia, diz o presidente da
Rede de Pesquisa sobre o Fim da Vida, Rafael Serrano del Rosal. O primeiro é
que seria incompatível com a Constituição: “Mas não é verdade, nela a vida é
defendida, mas não se obriga a viver”. Tampouco as pessoas são obrigadas, quem
quiser poderá pedi-la e quem não quiser, não acontece nada. É preciso também
rejeitar os argumentos consequencialistas: o que virá depois. Não se pode
legislar assim, com base em algo que não se pode conhecer. Também é falso que
se houver eutanásia os cuidados paliativos não se desenvolverão. Os dados da
Bélgica demonstram o contrário. “Em qualquer caso, a lei apresentada na Espanha”,
que tem o apoio do PSOE e do Podemos, “é muito garantista”.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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