segunda-feira, 10 de junho de 2019

Elus são Eles e Elas

Nuaj del Fiol, de 24 anos, passou a usar pronomes e adjetivos neutros para falar de si. 
Nem ele nem ela: elu Foto: Fábio Guimarães / Agência O Globo

Publicado originalmente no site da revista ÉPOCA, em 16/11/2018

Elus são eles e elas 

Pessoas que não se identificam nem como homem nem como mulher revelam as complexas questões modernas

Por Júlia Amin e Natália Boere

A pose é sexy. De saia curta, escarpim e blusa decotada, Mar Gonçalves, de 49 anos, cruza as pernas, deixa os cachos cair sobre o rosto, faz carão e bate o selfie diante do espelho. A foto é a proteção de tela de seu celular, que, aliás, é um dos poucos objetos que compõem sua mesa de trabalho. O contraste da imagem com o ambiente burocrático do banco — e com o que costuma vestir no dia a dia — é grande: só sai de casa de calça jeans, camiseta e tênis. A dualidade de estilos é, na verdade, sua essência. Mar é uma pessoa não binária: não se identifica nem com o gênero masculino nem com o feminino. Para o iFood e alguns colegas, é o Mar — o que não chega a ser um problema. Mas ela gosta mesmo de ser a Mar. “Quer me chamar de ele, falar o Mar, tudo bem. Mas, me encaixar numa caixinha, não. Diz que quer que eu levante um armário porque sou forte, não porque sou homem.”

A carioca não sabia o que era não binaridade até 2012, quando, navegando na internet, deparou com o conceito. Para quem sempre se considerou fora dos padrões, o mundo, de repente, passou a fazer sentido. Logo se entendeu como uma pessoa de gênero neutro e decidiu que, a partir dali, seu nome de registro, Marcelo, seria a inspiração para o nome social: atenderia por Mar. Na época, era casada com uma zootecnista, com quem manteve um relacionamento até agosto do ano passado. A companheira e os filhos dela, então com 17 e 18 anos, se esforçaram imediatamente para deixar de chamá-la pelo antigo apelido, Celo, e passaram a apresentá-la como Mar. “São pessoas de boa cabeça.” No primeiro encontro com a ex-mulher, em 2009, já havia dito que era transgênero.

Se, em casa, a questão estava resolvida, no trabalho havia um mar para atravessar. Ela tinha acabado de ser transferida para o setor de Recursos Humanos da Caixa Econômica Federal, no qual é responsável até hoje por dar subsídios à defesa de reclamações trabalhistas contra o banco. Não queria chegar ao novo grupo com a informação debaixo do braço. Preferiu esperar. Mudar o nome no perfil do Facebook parecia uma medida menos drástica e nem tão dramática. Pero no mucho. Ao passar a militar pelas causas LGBTQ+ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e queers) na rede social, em 2015, sua página foi tomada por mensagens de cunho transfóbico. Acabou apagando a conta. “Três meses depois, voltei fortalecida, com perfil novo, 100% assumida e militante”, lembrou.

No mesmo ano, Mar escreveu um texto sobre linguagem inclusiva e compartilhou com o pessoal do banco. Era hora de puxar o assunto e deixar de ser Marcelo no ambiente de trabalho. O processo foi lento e não exatamente fácil. Apesar de, aos poucos, muitos terem absorvido a novidade, uma colega fez questão de seguir enquadrando-a como homem. Mar desceu do salto: sem se preocupar em ser educada, pediu à moça que destilasse seu preconceito em outra freguesia. Também propôs um debate sobre diversidade à equipe e acabou por doutrinar a referida senhora, que hoje só a chama pelo nome de registro eventualmente. Por lapso, claro...

A falta de paciência para lidar com certas posturas hostis fez Mar preferir o mundo virtual ao real desde cedo. O computador e o videogame — além do cinema e da literatura — viraram seus refúgios diante da rejeição que começou a enfrentar ainda na infância. Na escola, na hora do recreio, em vez de jogar futebol, preferia brincar de elástico, o que era motivo de piadas e insultos. A chamavam de mulherzinha. Já na adolescência, reconheceu-se como mulher transexual, mas não se sentiu pronta para compartilhar a descoberta. Só aos 30 anos criou coragem para contar o segredo para a mãe, com quem morava e mantinha uma relação delicada. O passo foi acompanhado por outro ainda maior: saiu de casa e começou a tomar hormônios femininos e inibidores de testosterona. Os seios cresceram, os pelos diminuíram, a gordura corporal se redistribuiu. Nessa época, conheceu uma mulher trans, com quem ficou casada por quatro anos. Deixou de recorrer aos hormônios em 2008, mesma época em que seu casamento acabou. Resolveu colocar um pé no freio na transição porque uma identificação completa com o gênero feminino não era exatamente o que estava imaginando. “Dei um passo atrás, voltei para meu casulinho e fiquei assim até 2012, fazendo cosplay de pessoa cisgênero.”

Esse risco ela não corre mais. O Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou, em 1º de março, pessoas trans a mudar de nome e sexo nos documentos de identificação sem necessidade de cirurgia, o que foi regulamentado, em junho, pelo Conselho Nacional de Justiça. Em agosto, Mar aproveitou as férias para dar entrada no pedido de alteração do nome de registro. “Mais confusão para os outros, e mais tranquilidade interior para mim.”

O conceito de não binaridade é relativamente novo: chegou ao Brasil há cerca de oito anos. Recentemente, veio à tona após o desaparecimento de Matheusa Passareli, aluna de artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Morta no início de maio por traficantes do Morro do Dezoito, em Água Santa, Zona Norte do Rio de Janeiro, seu corpo não foi encontrado até hoje. Nos Estados Unidos, o termo começou a ficar mais popular na década de 90, quando apareceram as palavras “genderqueer” e “non-binary”, usadas para falar de pessoas que não se identificavam nem com o gênero masculino nem com o feminino. Ao longo da história da humanidade, entretanto, muita gente já se sentia como Mar. No século XV, antes da chegada dos colonizadores europeus, membros da tribo indígena americana Dois Espíritos acreditavam que dentro de um mesmo corpo havia um espírito de homem e um de mulher. No dia a dia, eles vestiam roupas e executavam o trabalho de ambos os gêneros.

Conhecer um pouco mais sobre essa tribo fez Nuaj del Fiol, de 24 anos, entender que o que passava por sua cabeça não era exclusivo. Começou a externalizar isso em 2016, quando resolveu contar para seus pais que era pessoa não binária, o que não foi muito bem compreendido. Como não se considerava nem menina nem menino, Nuaj passou a usar pronomes e adjetivos neutros para falar de si. “Para mim, não é ela nem ele. É elu mesmo.”

Elu (pronuncia-se êlu) é o pronome mais usado na linguagem não binária para substituir “ela” ou “ele”. Há, ainda, outras formas, como ilu (ilú) e el. Já os adjetivos ganham um “e” como vogal temática, proposta da comunidade LGBTQ+ justamente para evitar o binarismo de gênero gramatical. É também uma alternativa ao “@” — bastante usado no começo dos anos 2000 entre feministas que se incomodavam com os efeitos excludentes da língua — e ao “x”, que ganhou força recentemente ao ser adotado por pessoas trans, queer e não binárias como forma de desconstruir a dicotomia entre masculino e feminino. Ambos os empregos foram questionados por terem suas interações orais limitadas, explicou o professor da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Rodrigo Borba, autor do livro O (des)aprendizado de si: transexualidades, interação e cuidado em saúde , publicado pela editora Fiocruz.

Nuaj contou que, mesmo sem se dar conta, sempre questionou a imposição de gêneros. Cortou as madeixas no estilo “joãozinho” pela primeira vez quando estava na primeira série do ensino fundamental. Também não entendia o porquê de ter de frequentar o banheiro feminino. Quando entrou num banheiro masculino, foi puxade (passamos a empregar o “e” não binário para nos referirmos a Nuaj) pela orelha pela professora. Passou boa parte de sua infância e adolescência sendo chamade de sapatão. Até pouco tempo atrás, tinha inflamações na pele e na garganta; para elu, somatizações de seu sofrimento. Há aproximadamente dois anos, quando descobriu e começou a entender a não binaridade, teve a sensação de que não tinha nem mesmo um nome para chamar de seu. O nome de registro já era uma peça pregada pelo destino. Natália significa “nascimento”, e del Fiol “do filho”: uma previsão irônica de que não se enquadraria na binaridade dos gêneros. Numa de suas buscas interiores, tirou algumas horas para meditar. Ouviu de suas vísceras um som que fazia “nuuuuaaaaa”. Renasceu. A partir daquele momento passou a se chamar Nua. O “j” foi acrescentado posteriormente, por sugestão de uma numeróloga.

Nascide em Campinas, veio para o Rio há quatro anos com o objetivo de estudar: é alune de artes na Universidade Federal Fluminense (UFF) e está se formando em artes cênicas na Casa das Artes de Laranjeiras (CAL). Vive sozinhe com uma gata em um apartamento no Flamengo, na Zona Sul, para onde se mudou em março. Na portaria, um senhor de idade diz: “A Nuaj mora no quinto andar”. Elu contou que ainda não explicou a ele que é uma pessoa não binária e, por isso, sofre diariamente ao sair de casa. “Não consigo sair de bigode de manhã porque o porteiro vai me olhar estranho. E ele é um senhorzinho tão amigável...”

A desconstrução da aparência feminina tem sido a parte mais dolorosa de seu processo. Comprou uma calcinhona, que cortou para fazer um top e esconder os seios. Deixou de depilar as pernas e conquistou uma leve penugem no buço com a ajuda de alimentos que contribuem para os pelos crescerem, como sementes de girassol. “Eu gosto do meu corpo, mas tenho uma disforia social. Quando me falam que sou ela, tento me esconder.”

Em seu armário, há peças ditas femininas e masculinas. Acredita que roupa não tem gênero, que não passa de um pedaço de pano. Mas percebe que nem todos têm a mesma opinião. Se, por um lado, é tratade de forma mais respeitosa e gentil quando aparenta ser mulher, por outro, é vítima de insultos e preconceitos transfóbicos quando se veste de forma considerada masculina. Em junho, decidiu que iria de gorro, camisa grande com gola solta, calça e bigode reforçado por rímel a uma festa em Laranjeiras — frequentada pelo que chamou de burguesia folclórica hétero-cis-normativa. Alguns caras com quem havia se relacionado antes da transição olharam para elu como se não fosse a mesma pessoa. Outros riram de sua aparência, apontando com desdém. Três dias depois, essa questão ainda se refletia em seu trabalho. Nuaj estava no elenco da peça Um tartufo , dirigida por Bruce Gomlevsky, que esteve em cartaz até outubro no teatro Poerinha, no Rio. Em um exercício durante um ensaio, decidiu interpretar uma mulher estressada, sem nem mesmo ter percebido que precisava descarregar as emoções do fim de semana. Gritou.

Sua aparência também foi uma questão em seu último relacionamento amoroso, que durou cerca de um mês. O rapaz, cisgênero e bissexual, teve muita dificuldade em chamar Nuaj de elu. Ainda que se mostrasse uma pessoa compreensiva, soltava frases do tipo: “Gosto de gente estranha e exótica”. “Ele não falava por mal, mas não é para ser estranho, sou eu”, disse Nuaj.

Coordenadora do Laboratório Integrado em Diversidade Sexual e de Gênero, Políticas e Direitos da Uerj, Anna Paula Uziel acredita que é importante desvincular, cada vez mais, anatomia, desejo, prática sexual e amor de gênero. Para ela, a sociedade toma o binarismo como natural e faz apelos patéticos à natureza para dizer que é o certo, como se o ser humano estivesse pautado pela reprodução, e não pelo prazer. “Temos de nos perguntar por que a ausência de gênero incomoda tanto”, refletiu Uziel.

Foi graças a um misto de doçura com força de vontade, características que lhe são peculiares, que Nuaj conseguiu ser aceite pela família. Sua mãe foi a primeira a compreender. Um dia, falou que elu estava linde com a roupa que vestia. “Foi uma sensação inexplicável. Me senti respeitade, como as pessoas devem se sentir todos os dias.” O pai e a avó foram mais resistentes. O engenheiro de telecomunicações achou, durante um bom tempo, que a transição não passava de uma modinha. Depois pensou que Nuaj estava seguindo algum tipo de seita e que, quando tudo terminasse, voltaria a ser a bonequinha da família.

O primeiro passo foi ensinar a eles o conceito de cisgênero — termo utilizado para se referir ao indivíduo que se identifica com o gênero designado ao nascer. Depois, explicou a complexidade das identidades trans — a não binaridade aí incluída. Os “alunos” fizeram silêncio. Houve, então, um grande período de distanciamento entre eles, até que, em junho deste ano, logo após a mudança de apartamento, Nuaj teve uma forte gripe e precisou dos cuidados da família. Mãe, pai e avó, de seus oitenta e poucos anos, saíram de Campinas e se hospedaram na casa delu. Foi a convivência de uma semana que fortaleceu os laços. O pai, finalmente, deixou de chamar Nuaj pelo nome de registro, e a avó, uma nordestina arretada, passou a se referir a elu como “rapaz”. “Ela ainda não aprendeu a falar Nuaj, me chama de Nuano, Nuan.... Mas agora fala ‘ele’, ‘oh, rapaz’. Ela nunca tinha falado assim comigo, só chamava de rapaz quem é cabra macho.”

Quando criança, Sophi Saphirah, de 21 anos, achava que era um menino, seu gênero designado. Nascida em Uberlândia e filha de mãe solteira e evangélica, ainda adolescente não se reconhecia como transexual. Associava o termo à figura de um homem vestido de mulher. Hoje, se considera uma pessoa não binária, mas prefere ser chamada no feminino, já que nega a construção social do que é ser homem. “Às vezes, não quero pensar sobre isso, só quero ser. Não tenho exigências de ser tratada no gênero neutro, aceito o feminino sem problemas”, contou Sophi, amiga de Nuaj e estudante de artes cênicas na CAL.

Professora de psicologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ) e transexual, Jaqueline Gomes de Jesus destaca que o Brasil tem uma educação muito conservadora e rígida nos estereótipos de gênero. Para ela, nossa cultura tem imagens tradicionais: pressupõe que as meninas vão gostar de rosa, usar saia e brincar de boneca, enquanto os meninos vão preferir o azul, trajar calça e jogar bola. Para Sophi, uma cor não exclui a outra. Seus cabelos, longos e ondulados, foram tingidos de rosa e azul. Ela é bem alta e esguia. Sua pele é tão branca que beira o translúcido. O olhar é vago, e a fala cuidadosa e reflexiva, como se escolhesse cada palavra. Passou pelo processo de transição no ano passado, depois de um professor a proibir de interpretar um personagem que tinha características trans numa peça. Começou a pensar sobre si e, de lá para cá, vem se questionando. Tomou hormônio feminino e inibidor de testosterona porque não queria ser vista como bicha, menino gay. “As pessoas têm cabeças binárias. Seria natural eu ter barba, por exemplo, mas é uma coisa que eu não suporto por causa da leitura social que isso representa. Muita gente olha para ver se eu tenho peito ou pau.”

Embora não tenha vontade de se submeter a cirurgias, Sophi fez modificações estéticas para ser lida socialmente como mulher e evitar situações transfóbicas — chegou a ser ameaçada com um pedaço de madeira. Episódios como esse são comuns. Informações do Grupo Gay da Bahia (GGB), que há 38 anos coleta estatísticas sobre assassinatos de homossexuais e transgêneros no país, revelam que o Brasil é o país que mais mata LGBTQ+ no mundo. Só no ano passado, 445 pessoas foram vítimas fatais de crimes homofóbicos, número 30% maior do que em 2016. A assessora de Direitos Humanos e Minorias do Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), promotora Eliane de Lima Pereira, recebe diariamente denúncias de violência, como o caso da transexual Bruna Andrade de César, internada à força por sua mãe em uma clínica psiquiátrica em maio. Apesar de lamentar a falta de dados mais precisos de crimes contra essas pessoas, Pereira se mostra otimista com o protocolo de atendimento para mulheres transexuais e travestis nas delegacias do Rio, lançado pela Polícia Civil também em maio. Para ela, estratégias para dar visibilidade àqueles cuja existência é negada são extremamente poderosas.

Sophi sabe que, mesmo sofrendo preconceito diariamente, é bastante privilegiada por ter apoio da mãe e poder trabalhar com teatro — sem ganhar dinheiro por enquanto. “Gostaria de ver mais pessoas trans no mercado de trabalho. A maioria acaba se prostituindo para se sustentar.” Ela disse isso de forma enfática, enquanto brincava com seu gato na sala da casa em que mora sozinha. Já ao falar de sua vida pessoal, é muito discreta. Sua primeira relação mais séria, com uma pessoa não binária, começou há cerca de cinco meses. Amigues dizem que o casal se completa. E os perfis delus nas redes sociais, repletos de sorrisos e declarações, atestam: estão muito felizes.

Texto e imagem reproduzidos do site: epoca.globo.com

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