quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Prostituição: regulamentar ou proibir?


Publicado originalmente no site PÁGINA22, em 20 de março de 2017

Prostituição: regulamentar ou proibir?

Por Amália Safatle e Magali Cabral

A atividade da prostituição deveria ser regulamentada, de modo a garantir uma prática segura que respeite direitos trabalhistas? Ou abolida, para evitar que as mulheres e outras minorias sejam vítimas de um sistema patriarcal que as explora? O feminismo deve ser contra ou a favor da prostituição? Os argumentos de um lado e de outro despertam muita polêmica. Página22 ouviu duas opiniões divergentes, leia nas entrevistas a seguir.

PONTO


Letizia Patriarca fez mestrado em Antropologia Social, com o título As Corajosas: etnografando experiências travestis na prostituição, e é pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença (Numas-USP)

Para a antropóloga Letizia Patriarca, no que se refere à prostituição, existem as pessoas que de alguma forma escolhem exercer a atividade e as que praticamente não têm escolha, por contingências socioeconômicas – como as travestis, que dificilmente são aceitas em outros empregos.

Portanto, “o que deve ser garantido é somente a possibilidade de escolher”, defende a estudiosa, nesta entrevista concedida por email. Segundo ela, essa possibilidade de escolha se dá melhorando tanto as condições de trabalho geral, quanto as condições do trabalho da prostituição por meio de sua regulamentação.

Como a senhora vê o movimento pela regulamentação da prostituição no Brasil? Como tem evoluído e quais são os fatores que têm determinado essa evolução, como participação da sociedade civil e fortalecimento do feminismo no Brasil?

Cabe pontuar que eu não faço programas, venho trabalhando desde 2012, através da Antropologia, junto à militância por direitos para profissionais do sexo. Devido a contatos em um bairro de prostituição de Campinas – Jardim Itatinga – e à proximidade com a Associação Mulheres Guerreiras de lá, comecei a ouvir as falas de mulheres cisgênero [pessoas cisgênero são as que vivenciam seu gênero igual ao sexo que lhes foi atribuído em seu nascimento] e travestis em suas reivindicações como profissionais do sexo (mais sobre a Associação e o Jardim Itatinga na Entrevista). Saliento isso porque a movimentação na prostituição também conta com ativistas que encampam a causa e não são profissionais do sexo.

Ressalto aqui a importância de antropólogas/os que se aproximam, estudam e militam com as prostitutas, profissionais do sexo, trabalhadoras sexuais, putas, garotas de programa. Essas variações de como se identificam se devem também às discussões no movimento na prostituição que se organiza desde 1987, impulsionado pela saudosa Gabriela Leite.

Ali nascia então a Rede Brasileira de Prostitutas, e atualmente temos também a Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais (CUTS), que funcionam por meio de organizações mais locais, como a Aprosmig (Minas Gerais), o Gempac (Pará) e o Núcleo de Estudos da Prostituição (NEP, do Rio Grande do Sul). Talvez a maior conquista dessa movimentação em busca da plena regulamentação da prostituição no Brasil tenha sido a entrada da categoria “profissional do sexo” em 2002 na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). Em 2012, o deputado Jean Wyllys (PSOL), em contato com o movimento organizado de prostitutas, propôs o PL nº 4.211/2012, especificamente sobre a regulamentação. Mas este, assim como o movimento em prol da regulamentação, vem sofrendo uma também crescente oposição por parte de movimentos conservadores que ocupam cargos no Legislativo.

Nesse cenário, a prostituição vem sendo um assunto que recobrou visibilidade, as discussões proliferam em movimentações feministas, a produção bibliográfica cresce e aparecem publicamente novas figuras nessa militância. Há também uma discussão crescente acerca de travestis e como a grande maioria delas se prostitui, o que também dinamiza as discussões.

Em sua opinião, por que a regulamentação é uma causa que merece apoio?

É muito importante questionar no que consistiria essa regulamentação em face da legislação vigente. Como foi dito, a profissional do sexo é categorizada como profissão pela CBO, portanto, não é crime, e uma pessoa que se prostitui não poderia sofrer constrangimentos (legais e policiais). Quem é criminalizada é a pessoa que se enquadra como “favorecimento da prostituição” e também as casas de prostituição, embora haja um entendimento mais flexibilizado para estas recentemente.

A questão é que todo mundo já viu uma casa na qual se realiza prostituição, e sabemos onde encontrar um ponto na rua com mulheres cisgênero e travestis disponíveis para programas. A prostituição já vem ocorrendo em estabelecimentos e junto a terceiros, porque a realização dos programas não se limita só a profissionais do sexo e a clientes.

Discutir de que formas regulamentar e tirar da criminalidade esse suporte, esse entorno, ainda é difícil e não é consenso, mas percebe-se que, quanto mais uma parte da prostituição for criminalizada, mais na ilegalidade ficam as/os que estão realizando programas. Descriminalizar e regulamentar seu trabalho pode ser uma forma de reduzir as violências que já ocorrem por conta dessa ilegalidade. Refiro-me à violência de clientes, mas sobretudo à violência policial, que é lamentavelmente cotidiana contra aquelas/aqueles que vivenciam a prostituição.

O debate deve começar abordando como e o que regulamentar, até porque o movimento de prostitutas vem se organizando e exigindo isso há mais de três décadas. Alguns pontos são: quanto dinheiro do programa fica para as/os profissionais do sexo, como se organizam politicamente, como recebem aposentadoria.

Que características próprias a prostituição assume no Brasil por conta da imensa desigualdade social e pelo histórico de exploração de negras e indígenas desde o Brasil Colônia?

No contexto em que trabalhei, a maioria era de travestis negras. Importante ressaltar que nem sempre elas se autoidentificavam assim. Essas identidades – de travesti, de negra, de profissional do sexo – são políticas, no sentido de que são afirmadas e reivindicadas pra gerar determinados reconhecimentos, conquistar mais respeito, obter políticas públicas, mudar legislações e situações de opressão. Por isso é muito importante atentar quando essas identidades são acionadas, mas também não podemos deixar de combater as opressões, mesmo quando elas não estão assim claramente colocadas.

É preciso, portanto, considerar os contextos específicos de cada pessoa, entender quais são as violências e desigualdades que acometem determinados grupos e, principalmente, que as opressões são reproduzidas o tempo todo e por qualquer pessoa. Porque as pessoas são muitas coisas ao mesmo tempo. No Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença (Numas), da Antropologia da USP, onde trabalho, costumamos dizer que esses marcadores – como gênero, sexualidade, classe, raça, geração – estão sempre articulados e merecem atenção em cada situação.

Também tem havido recentes estudos com prostitutas indígenas – ressalto aqui os de Silvana de Souza Nascimento, em áreas não urbanas da Paraíba. É fundamental observar e analisar as diferenças na realização da prostituição, de acordo com diversos contextos de região e de marcadores que estão articulados nas vivências das profissionais do sexo.
  
Podemos dizer que a desigualdade no acesso às oportunidades é um fato de peso que leva as mulheres para a prostituição – não por escolha de seu destino, mas por contingências socioeconômicas?

Certamente a prostituição não é um mundo separado, então o que leva qualquer pessoa a escolher qualquer profissão tem a ver com contingências socioeconômicas – e na prostituição também. Há bairros, pontos e casas de prostituição que ficam propositadamente afastados, mas o que a existência desses sugere é justamente que a prostituição envolve negócio, mercados, rende dinheiro para quem agencia e para quem se prostitui.

Eu trabalhei especificamente com travestis, que têm em suas trajetórias uma série de exclusões mais marcadas, limitantes, pois muitas são expulsas de casa por familiares que não as aceitam como são, têm de largar a escola por não se encaixarem e assim também logo acessam o mercado de trabalho em situações precárias. Mas, mesmo entre elas, havia uma parcela considerável que havia escolhido fazer programas ou os fazia para complementar sua renda.

São infinitamente variadas as histórias e trajetórias das que realizam programas. Então, investigar como chegaram nessa profissão e se a escolheram pode ser infrutífero, além de descambar em argumentos moralizantes. O foco tem de ser mesmo isso que você colocou: a desigualdade no acesso às oportunidades, tanto pra mulheres cis quanto para travestis. Quais são as profissões disponíveis? Quais são as condições de trabalho e como são as remunerações? Por que diante de outras é na prostituição que muitas preferem, pois dali conseguem ganhar mais?

O trabalho como profissional do sexo é um campo no qual mulheres, transexuais, travestis e transgêneros podem exercer o ativismo feminista? De que forma?

Profissional do sexo pode ser também um termo interessante para pensarmos nos pontos em comum que perpassam as diferentes vivências da prostituição feminina. Então, pensar o que tem em comum para uma travesti, para uma mulher trans e para uma mulher cis, por exemplo na hora de negociar um programa com um cliente, ou na forma de exigir o pagamento dele ou pelo lado da relação com suas famílias, no dinheiro que elas ganham na prostituição e não só se sustentam, mas também revertem esse dinheiro para suas famílias. Enquanto atitude de afirmação, há luta feminista.

Vejo uma enorme potência dos feminismos como afirmação de si, do próprio corpo e da própria sexualidade da forma que se desejar, contanto que não violente as outras. Então, nesse sentido, a profissional do sexo é só mais uma das vozes que soma e luta nesse ativismo plural.

A prostituição é uma maneira de desafiar o patriarcado e empoderar essas minorias? Por quê?

Há figuras na prostituição que são vorazes contra o machismo e ao mesmo tempo a favor do trabalho na prostituição, e acho que é com elas que a gente pode aprender novas formas de luta. Uma luta que encare liberdade para o sexo e para a sexualidade de mulheres e travestis, ao mesmo tempo em que exige melhores condições para o trabalho sexual. Nesse sentido, vem se desenvolvendo o “Putafeminismo”. Acho muito importante, porque une o que parecem ser duas lutas separadas – uma contra o estigma moral, que liberta as putas, as vadias, em oposição às santas; e outra que luta pelas putas que são profissionais do sexo.

Cabe ressaltar que empoderamento não é algo individual, não basta somente eu desejar mudar e tomar consciência. Claro que, quando se passa a exercer uma forma aguerrida, resistente e subversiva, isso vai moldando e mudando todas as relações em volta. Mas isso precisa estar acompanhado com a luta mais geral por melhorias de condições e oportunidades para todas, melhorias nas oportunidades de acesso, nas remunerações e nas condições de trabalho gerais e do trabalho sexual em suas especificidades.

O movimento pela abolição da prostituição argumenta que a atividade se trata de uma forma de violência masculina, pois seria um exercício de livre escolha do homem e não da mulher e demais minorias. O que a senhora acha desse movimento?

Há essas vertentes feministas que se dizem abolicionistas, no sentido de querer o fim da prostituição. Eu acho fundamental ouvir os questionamentos levantados por elas, para que estejamos sempre alertas, porque opressão e violência contra mulheres estão sendo sempre reproduzidas e de formas diferentes. Mas está justamente aí a dificuldade, porque precisamos de disposição constante para analisar os casos diversos e entender de que forma estão se dando as situações e contextos violentos, para saber exatamente como combater, de forma prática e estruturada.

Não são só homens e mulheres que estão na prostituição. E às vezes suas posições estão invertidas. Há poucas, mas há as mulheres que são clientes e que pagam por serviços sexuais de homens. Aí entram os outros marcadores, e nesse caso costuma ser latente o de classe, mas podemos pensar no de geração também, por exemplo em uma relação entre a dona de casa de prostituição, que geralmente fez programas a vida toda e passa a agenciar a prática, e a profissional que trabalha para ela. É muito difícil captar o que há de opressão e de violência na prostituição.

Por conta também da situação de semilegalidade que comentei no início, existem pouquíssimos dados estatísticos, então os trabalhos de antropólogas/os acabam sendo uma boa ferramenta para pensar quais são essas variadas violências que podem ocorrer. Na grande maioria das vezes, o que eu ouvia como sendo violento era o cliente querer pagar menos ou não pagar pelo programa.

A prostituição em si não é uma violência, mas temos de ouvir o que elas dizem. Aí também nota-se outro impasse, porque não haverá uma única voz capaz de representar todas que estão na prostituição. Há quem escolhe e há quem não pode escolher, então o que deve ser garantido é somente a possibilidade de escolher. Possibilidade que se dá tanto melhorando as condições de trabalho geral quanto as da prostituição como um trabalho regulamentado.

A corrente abolicionista também afirma que a prática da prostituição atende aos interesses da sociedade patriarcal, propicia a violência, o uso de drogas e álcool, e estimula um mercado em que as profissionais do sexo são as que menos ganham – os maiores ganhadores seriam os intermediários e outros atores que orbitam em torno do serviço prestado. Como a senhora vê esses argumentos?

Há nuances mesmo nessas correntes abolicionistas e distintos argumentos são levantados, e até mesmo diversas formas de interpretar o que seria sociedade patriarcal. O que estamos dizendo com isso? Se estamos falando de regulações, julgamentos e violências contra as escolhas e vidas de mulheres, consigo pensar em diversas situações dessas que ocorrem em outros contextos que não na prostituição. Conheci alguns casos de mulheres que faziam programas e diziam que o problema era lidar com o marido em casa, mas que, com o dinheiro do programa, conseguiam uma certa liberdade diante dessa situação. Então, falta-nos perguntar quem são essas pessoas que estão fazendo programas. Não é só isso que elas fazem e não é só a prostituição que elas vivenciam.

Particularmente, pergunto-me o quanto essa ideia dá conta das variadas opressões, porque a gente perde muito considerando que é só o homem que violenta uma mulher. Por exemplo, faz tempo que a militância de mulheres lésbicas e bissexuais chama atenção para as relações violentas e opressoras entre mulheres.

O contexto de drogas também enfrenta situações paradoxais de criminalização, que só geram mais ilegalidade. Assim, as pessoas envolvidas ficam mais à mercê de abusos de poder policial, de uma polícia que atua de forma racista, classista, LGBTfóbica.

A violência que acaba orbitando a prostituição é consequência dessa situação que não regulamenta plenamente o exercício da/do profissional do sexo, o que está inserido em um contexto mais amplo de desigualdade social.

CONTRAPONTO 


Flávia Herédia e Ticiana Labate integram o Comitê pela Abolição da Prostituição. Herédia estuda Letras e Labate é formada em Ciências Sociais, ambas na Universidade de São Paulo

Flávia Herédia e Ticiana Labate não acreditam que as mulheres tenham liberdade de escolha quando se trata de prostituição. Para elas, a atividade é resultado de um sistema violento imposto sobre as mulheres pelo patriarcado, de mãos dadas com o capitalismo. Por isso, são adeptas da corrente abolicionista, um movimento ainda de pouca expressão no Brasil e que tem suas maiores referências em alguns países europeus e nos Estados Unidos. O abolicionismo entende a mulher como vítima da situação e busca protegê-la, criminalizando o consumidor, os intermediários e as casas de prostituição.

Quais são as bases de pensamento do movimento pela abolição da prostituição?

Flavia Herédia – Entendemos a prostituição como algo realmente exploratório para as mulheres, por isso a ideia de abolir. A prostituição, por ser algo exploratório em si mesmo, não tem como ser regulamentada, ficar mais limpinha, mais segura. O modelo abolicionista considera que a prostituição é uma forma de violência contra as mulheres. Os exemplos reais de países que regulamentaram foram horríveis. Na Holanda e Alemanha, por exemplo, o tráfico de mulheres aumentou muito, por que eles pegam mulheres do Leste Europeu, que têm uma situação financeira bem precária, e as trazem para estes lugares regulamentados. Elas aparentemente são autônomas, mas na verdade são traficadas. Para o Estado, parece que está tudo ok.

Ticiana Labate – Esse tráfico é visto pelo Estado como migração para o trabalho.

Quais são as principais referências do movimento abolicionista?

Labate – Uma delas se chama Yvonne Svanström [pesquisadora da Stockholm University], que fez várias pesquisas sobre o modelo nórdico. Tem a Melissa Farley, que coordena um projeto chamado Prostitution Research Education. Ela reúne bastante material sobre os bordéis legalizados de Nevada, nos Estados Unidos. A Catherine MacKinnon [advogada, adepta do feminismo radical], e a Andrea Rita Dworkin [escritora feminista conhecida por forte oposição à pornografia] foram duas das mais importantes no desenvolvimento do modelo abolicionista.

Na América Latina, a Coalizão Internacional Contra o Tráfico de Mulheres, que tem um posicionamento abolicionista, é bem forte. Mas no Brasil, não. Aqui é ainda muito difícil pautar essas ideias.

É um movimento recente?

Labate – Ainda é defendido por abolicionistas independentes, que não têm ligações grandes com partidos, com grandes movimentos. Algo bastante incipiente.

Que países aboliram e tiveram os índices de prostituição reduzidos?

Labate – Esses países nunca chegaram a 100%, mas conseguiram reduzir bastante. Primeiramente a Suécia, onde a lei de criminalização do consumidor (de prostituição) foi aprovada em 1998 e entrou em vigor em 1999. Depois vieram a Noruega e a Islândia e, mais recentemente, o Canadá, a França e a Irlanda do Norte. Quando esta lei foi aprovada na Suécia, veio justificada por uma lei maior que se chamava “Lei de Violência Contra as Mulheres”, atestando a posição do Estado sueco de que a prostituição era uma forma de violência masculina contra mulheres e crianças.

Herédia – Porque não é à toa que a maior parte das pessoas prostituídas seja formada por mulheres. E também que a maior parte das pessoas que consome a prostituição, o sexo pago, seja de homens. Isso revela que há uma estrutura de violência por trás que faz com que este sistema se mantenha. E é um sistema muito lucrativo. O patriarcado e o capitalismo estão de mãos dadas nesses países regulamentaristas. Porque tem gente lucrando com isso, tem cafetão lucrando com isso.

Os próprios consumidores se beneficiam desse sistema. Eles acham que está ótimo ter acesso ao corpo feminino pagando. Aí a mulher vira mercadoria. É como se fosse legitimado o papel da mulher enquanto objeto.

Existem informações de que a atividade da prostituição no Brasil é exercida, na maioria, por mulheres que optaram por essa profissão e não por outra. Abolir não significaria restringir a liberdade de escolha individual? E no caso das pessoas que estão ali por opção, sem cafetão e sem tráfico?

Labate – Para nós, a exploração não se dá somente quando existe um intermediário no processo, nem quando só existe tráfico sexual. A exploração é uma questão inerente da prostituição, por mais que a pessoa nem reconheça explicitamente como tal. Porque as mulheres estão coletivamente submetidas a uma questão de ideologia da apropriação dos corpos dela, à visão do corpo como uma mercadoria coletiva dos homens do qual eles podem se apropriar. Eu não acredito que a qualquer hora elas podem sair e fazer outra coisa da vida.

Existe um projeto na Estação da Luz [região central de São Paulo] com mulheres em situação de prostituição, coordenado pela Cleone [Santos], que integra a Marcha Mundial das Mulheres. Ela se prostituía no Jardim da Luz e saiu dessa situação depois de muito tempo. Lá tem uma mulher de quase 80 anos que até hoje fala: “Eu acredito que ainda vou sair! “ E, ano após ano, elas continuam lá. Tem uma moça que falou pra gente: “Eu preciso do dinheiro na hora. Eu não posso receber por mês”. É uma situação de precarização tão extrema… A maioria delas não tem o Ensino Médio completo e a maior parte não teve acesso a recursos básicos. Não sabe ler e escrever. Então não sei se é uma opção tão grande assim de que elas dispõem.

Herédia – Primeiro ponto: nós acreditamos que é muito violento este argumento de que as mulheres gostam e de que elas estão ali porque querem. Normalmente este é o argumento para justificar vários tipos de violência contra a mulher. Exemplo: a mulher acaba de sofrer violência doméstica, mas continuou com o marido porque ela gosta. Ou então ela foi assediada, mas ela também gosta. “Foi um elogio!” Então acho que é uma estratégia do próprio patriarcado falar que a gente gosta da própria exploração. Que a gente gosta de se prostituir. Segundo ponto: muitas mulheres que se pronunciam abertamente a favor da prostituição não estão em situação de prostituição. Estão agenciando, são intermediárias. Quando a mulher quer sair dessa situação, ela não vai dar a cara a tapa e falar na mídia, pois justamente não quer ser vista. Fica muito difícil quantificar quantas querem sair, porque elas não falam.

Mas nem se fizer uma pesquisa em que o nome não aparece?

Labate – É muito difícil. Estamos fazendo um projeto de trajetória de vida com as mulheres da Luz, e elas têm muito medo de aparecer. Elas não são as mulheres das reportagens que as pessoas gostam de ler, sabe? Sobre a prostituta feliz que fez uma faculdade de não sei o que, mas que prefere ser prostituta.

Herédia – Isso representa zero vírgula zero zero zero. Porque a maioria está se prostituindo por um prato de comida e para alimentar seus dependentes.

Labate – A maioria das mulheres da Luz é mãe solteira, 90% tem um filho, dois filhos ou muitos filhos. A Cleone fala muito isto: “Eu saí da prostituição, mas a prostituição não saiu de mim”. Uma vez que você entra, é muito difícil sair. Se sair, será vista como aquela mulher que estava lá naquele lugar se prostituindo. Há uma série de barreiras e entraves – inclusive o fato de já ter sofrido abuso na infância – que se perpetuam psicologicamente.

O movimento pela abolição não vem reforçar o estigma que a prostituta já sofre?

Labate – Não. Para mim é uma questão como: “Ah, você é a favor da abolição da escravidão, então você é contra os escravos”. Nós vemos a prostituição como um sistema … o sistema é violento contra as mulheres. A culpa não é delas. O abolicionismo nunca prevê a penalização das mulheres, e sim dos consumidores e dos intermediários. São oferecidas alternativas e assistência social para que as mulheres possam sair da prostituição e se inserir no mercado de trabalho. Em uma sociedade capitalista, isso é muito difícil. Não quer dizer que são projetos super bem-sucedidos, mas a tentativa é fazer com que as mulheres sempre possam sair da prostituição, que lhes seja dada uma alternativa.

Herédia – Na verdade, o grande estigma é achar que mulheres exploradas gostam de ser exploradas.

Mas e se elas próprias não se veem como exploradas?

Herédia – Vocês não acham estranho que 80% das pessoas nesta situação sejam mulheres? Por que o homem não está nesta situação? Se for realmente uma escolha, por que os homens não estão fazendo esta escolha? Por que será que essa escolha é feita normalmente por mulheres que não têm o que comer?

Labate – É muito difícil para uma mulher que está em uma situação violenta se reconhecer naquela situação. O modelo abolicionista implica uma política de legislação. Estamos falando da implementação de uma coisa muito grande. Quando você olhar para algumas mulheres dizendo “eu gosto, eu escolho, eu faço, eu opto”, tem de pensar em quantos milhões de outras mulheres podem ser prejudicadas com este tipo de política. Quando a prostituição é regulamentada, você vê os resultados gritantes e bizarros aparecendo. É preciso ter visão crítica sobre as falas das mulheres. Outra coisa: o foco é sempre colocado nas mulheres que se prostituem. Nunca vejo as pessoas discutindo sobre os consumidores. Eles são invisíveis, são blindados. Ninguém discute se está certo ou errado eles consumirem sexo. Ninguém pensa no sistema e em quem é responsável por criar demanda para esse sistema.

Vamos supor que um homem ou mulher com um problema físico, uma doença, tenha dificuldade em encontrar um parceiro e precise recorrer a um serviço sexual.

Herédia – O modelo abolicionista não trabalha com exceção, e sim com a estrutura. E estrutura é essa. São mulheres que trabalham com a prostituição, homem que usa a prostituição e acha que é legitimo usar o corpo da mulher pagando por isso.

Quando você fala do corpo da mulher, não podemos ver como uma prestação de serviço como qualquer outra que use o corpo? Por exemplo, uma modelo? É porque envolve o sexo que a coisa se torna problemática?

Herédia – Você está vendendo o seu corpo. Não é a mesma coisa de vender a sua força de trabalho.

Mas o cliente não está comprando o corpo em si, não pode levá-lo para casa. Está comprando um serviço que tem hora para acabar e que custa X. Até que ponto tem um moralismo aí?

Labate – Uma pessoa me perguntou isto uma vez: uma empregada doméstica também não está usando o corpo? A questão é, sim, o sexo. Porque vemos a prostituição como uma violação do corpo das mulheres, como um estupro.

Mas uma violação sendo consentida?

Herédia – O consentimento temos que questionar. É muito difícil falar que a gente consente ser explorada. A gente é objeto sexual. A gente é socializada para ser um objeto sexual. Então como dizer que consentimos esse papel? Isso é muito violento.

Labate – Para algo ser força de trabalho, este trabalho precisa se externalizar em alguma coisa. Tanto na forma física de algum objeto que se produz quanto em um trabalho intelectual. A prostituição não tem nenhum desses dois aspectos. Então é muito interessante tentar enxergar essa relação entre prostituição e trabalho… a prostituição é muito mais antiga que o capitalismo. Uma autora que estuda esse tema, chamada Amy Dru Stanley [professora na Yale University], fala como se deu a passagem de algo muito associado com a escravidão para essa relação de contrato. Tanto que o livro dela se chama From Bondage To Contract, ou Da Escravidão ao Trabalho Livre. Rechear a prostituição com essa noção de trabalho, de contrato, de jornada do que quer que seja, isso não torna a prostituição menos violenta. É quase como se fosse a própria moralização do trabalho em cima da prostituição. Então não é uma questão de moral do sexo, porque nem acho que você precisa fazer sexo só com alguém que você ama, que você goste. Mas significa homens poderem coletivamente dispor do direito de chegar em qualquer lugar e manter acesso sexual com uma mulher simplesmente porque ela está vendendo aquilo. E aquilo não é uma venda simplesmente arbitrária. É uma imposição coletiva mesmo. Existe algo por trás daquilo.

Quando a gente fala: “Ah, é o sexo que pesa?” Sim, porque existe violência sexual. Então é o sexo que pesa. Mas não é uma questão de moral sexual. É uma questão do sexo sempre sendo essa ferramenta pela qual os homens podem obter acesso à exploração sexual.

E se a mulher quiser comprar uma noite de diversão?

Labate – Acho que ninguém deve comprar sexo de ninguém. Mas não é a mesma relação.

Herédia – Eu nem consigo pensar nessa hipótese, porque o homem não é objeto sexual. Não consigo pensar em um mundo em que ele seja socializado para isso, para ser um objeto.

Tem alguns homens que já são objeto sexual.

Labate – Mas os consumidores na sua grande maioria são homens.

E se a coisa virar?

Labate – Só consigo pensar nas coisas que existem. Não consigo materializar…

Em um mundo hipotético ideal, o abolicionismo nem seria necessário. Se chegarmos a um nível de igualdade suficiente, talvez ele nem seja necessário. Estamos falando dele porque existe uma necessidade.

Na tentativa de proteger a mulher, existe um risco de vitimização? A prostituição não poderia ser uma forma de empoderamento feminino, na medida em que os movimentos das profissionais do sexo se unem para impor suas regras, definir os contornos da atividade de acordo com o seu bem-estar e conquistar direitos?

Labate – Nem todas as mulheres do mundo vão passar por todas as situações que algumas mulheres passam. Por exemplo: eu não passei por situação de violência doméstica, mas posso falar sobre a situação da violência doméstica. Para mim, este é o papel do feminismo. Ele fala por todas as mulheres porque enxerga uma questão coletiva e não um “roubo de fala”. O modelo abolicionista vai nesse sentido. Em relação à vitimização, a noção de vítima pode até fundar coisas que para o Direito são muito importantes. Por exemplo, as políticas de ação afirmativa. Elas existem quando você vê que há uma desigualdade colocada na sociedade e que é preciso agir em cima dessa desigualdade. Quando você vê pessoas em uma situação específica de vulnerabilidade, não é para dizer que elas são pessoas incapazes de mudar esta situação, nem que são pessoas completamente manipuladas. Não é isso. Mas, sim, enxergar que elas são submetidas a uma situação à qual você não quer que elas sejam submetidas. Eu não quero que as mulheres sejam forçadas a se prostituir coletivamente.

Herédia – As cotas, por exemplo. É uma questão afirmativa, certo? Quando você defende cotas para negros, não é porque você está falando que o negro não tem capacidade cognitiva para passar no vestibular. Mas é entender que, por ter havido a escravidão, e pelo fato de a inserção dos negros ser complicada até hoje, você enxerga que aquela comunidade é vítima, sim, porque não foi completamente inserida. Reconhecer que existem minorias que são vítimas faz com que a sociedade pense em alternativas para a inserção de fato.

O movimento pela abolição estaria alinhado com a bancada mais conservadora do Congresso, enquanto o deputado Jean Wyllys, do PSOL, encampou o projeto de lei pela legalização da profissão?

Labate – Bom, o próprio PT, que não é exatamente conservador, discorda completamente do PL. A CUT tem uma briga enorme contra o PL. O próprio grupo de mulheres do PSOL discorda do Jean Wyllys também. Tem várias abolicionistas no PSOL e elas estão tentando fazer com que ele retire este projeto de lei. Eu acho que as feministas radicais, sendo extremamente favoráveis à legalização do aborto, não podem ser consideradas moralistas ou religiosas. Todas as mulheres da SOF [Sempreviva Organização Feminista], ligada à Marcha Mundial das Mulheres, são contra o PL.

Herédia – Sobre o moralismo, primeiro a gente defende as mulheres. Dentro do modelo abolicionista, não está prevista nenhuma penalidade à mulher. Diferente da bancada conservadora, que acha que a prostituição só existe porque existe oferta. Na nossa concepção, a prostituição existe porque existe demanda. Porque homens querem consumir mulheres. A oferta se cria a partir disso. Mas, na cabeça dos conservadores, a mulher é responsabilizada de certa forma. Nós a vemos como uma vítima de uma estrutura que há por trás. O projeto do Jean Wyllys é extremamente problemático.

Por quê?

Labate – Começa no fato de que a própria emenda do projeto diz: é um projeto de lei que visa regulamentar os profissionais do sexo, o que deixa passar uma coisa que está por baixo. que é a legalização das casas de prostituição e da cafetinagem. Isso altera o Código Penal no Brasil.

Herédia – Inclusive algumas pessoas regulamentaristas discordam do PL porque ele é péssimo. Até as profissionais do sexo discordam.

Mas o PL, embora encampado pelo Jean Wyllys, foi feito pela Rede Brasileira de Prostitutas e vem sendo chamado de “Gabriela Leite” [que foi uma das líderes da rede].

Herédia – Gabriela Leite era uma universitária privilegiada que não representa a grande maioria das mulheres prostituídas.

Texto e imagens reproduzidos do site: pagina22.com.br 

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