De torturada a ativista: A história de sobrevivência de
Eliana Rolemberg
“A ideia de que lutar por direitos é defender bandido foi
muito bem orquestrada, mas é mentirosa."
Por RYOT Studio & CUBOCC
Ela viveu um tempo em que sentir medo era regra. Em que
defender ideais era considerado “subversão”. Passível de tortura. De morte. Não
havia liberdade. Muito menos garantia de direitos. Durante os anos 1970, no
auge ditadura militar, a socióloga Eliane Rolemberg, hoje com 74 anos, foi
levada a uma prisão clandestina e, durante 20 dias, torturada. Em uma sala
pequena, ela lembra, somavam-se oito algozes. “Um deles, tenente do Exército,
que se dizia pertencer à Igreja Batista, lia trechos da Bíblia enquanto
assistia”, conta em entrevista ao HuffPost Brasil. O inferno que viveu, embora
nunca esquecido, construiu uma sobrevivente com sede de transformação.
Eliane fazia parte do grupo de estudantes que realizou uma
ocupação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) para fazer
oposição à relação da Igreja Metodista com os Estados Unidos, e criticar
publicamente os crimes cometidos pelo regime militar no Brasil. Eles não só
realizavam ocupações, como também pesquisas acadêmicas. Todo o material era
guardado na casa do tio de um dos estudantes, que descobriu e fez uma denúncia.
Posso dizer que os direitos humanos são o foco da minha
vida.
“Jogaram-nos em um carro e nos conduziram para um lugar que
depois fui descobrir que era o presídio Tiradentes, que hoje foi demolido.
Soube que esse lugar era uma prisão ilegal, e eles poderiam desaparecer com as
pessoas, fazer o que quisessem… Para lá levavam muitos dos que deveriam
desaparecer. Fomos recebidos por homens furiosos formando um corredor,
conhecido como corredor polonês. Todos nos dirigiam palavras de baixo calão,
nos davam socos e pontapés. Depois também fiquei sabendo que a prisão fez parte
da Operação Bandeirante”, conta Rolemberg.
Conhecida como Oban, a Operação Bandeirantes foi criada em
1969 tinha como objetivo investigar e desarticular grupos entendidos como
“facções revolucionárias comunistas”, que em sua maioria faziam oposição ao
governo. Exatamente o tipo de característica que o grupo de estudantes a qual a
socióloga fazia parte continha na visão dos militares. A organização também
contava com o apoio de setores da
sociedade civil e tornou-se contou com setores da sociedade civil e, assim,
tornou-se um pólo de arbitrariedades e violação dos direitos fundamentais à
época.
Sempre que alguém saía para interrogatório cantávamos
transmitindo esperança e acolhimento na volta.
Rolemberg ficou presa na mesma cela que a maranhense Damaris
Lucena, operária e ativista brasileira. Lucena, junto com os filhos, presenciou
o assassinato do marido. Em seguida, também foi presa e torturada. “Ela estava
desesperada. Pra ela era um certo alívio saber que eu estava lá, porque eles
[torturadores] se ocupariam me torturando e esqueceriam um pouco dela”, lembra
Rolemberg, com pesar. “Sempre que alguém saía para um interrogatório cantávamos
transmitindo esperança e acolhimento. Era o único jeito”, conta.
Ela lembra que em um momento o pior torturador da prisão fez
suposições sobre um resultado possível durante o regime. “Se um dia as coisas virarem, o que vocês
fazem comigo? Vocês vão me torturar?”, perguntou. Ela afirma que respondeu ser
contra a tortura, e só esperava que ele se arrependesse.
Um tempo depois, a soltura de Damaris e de seus filhos ― que
tinham sido encaminhados para o juizado de menores ― foi negociada. Exilada em
Cuba, Lucena prometeu a Rolemberg que faria o possível para ajudá-la de alguma
forma. “Eu só estou viva hoje graças a ela”, lembra em tom de gratidão. Lucena
denunciou à imprensa cubana a prisão ilegal de Eliana, que, pouco tempo depois,
foi transferida para outra prisão e que, quando liberta, se exilou na França.
Agora, queremos ir além, com uma Comissão de Memória e
Verdade.
Durante anos, Rolemberg morou na Europa e trabalhou junto à
Divisão da Juventude, da UNESCO e também foi do Setor de Migrantes e Refugiados
do Serviço Civil Internacional (SCI). Retomando o trabalho que tinha sido posto
em cheque no Brasil, ela transformou sofrimento em luta, como tantas vezes são
obrigadas a fazerem as vítimas de grandes opressões, e continuou dedicando sua
vida à luta que considera sua missão.
Em 1979, com a Lei da Anistia, pôde, enfim, voltar ao
Brasil. Morando no norte do País, ela acompanhou o que pode ser caracterizado
como o renascimento da discussão sobre direitos humanos e democracia. Hoje, com
74 anos e o título de “cidadã bahiana” nas mãos, ela coleciona a participação
em várias organizações não-governamentais, em especial na CESE (Coordenadoria
Ecumênica de Serviço), que esteve à frente até 2013. A ONG se define como uma
comunhão de igrejas cristãs que há 40 anos luta por direitos no Brasil.
“Podemos dizer que nós estivemos no nascedouro do movimento
nacional dos direitos humanos no Brasil. Acompanhamos o movimento pela terra, o
movimento por moradia, direito à cidade... e tudo isso, claro, tinha muita relação
com os direitos sociais”, afirma. ”A ideia de que lutar por direitos humanos é
defender bandido foi muito bem orquestrada, mas é mentirosa. O
‘anti-esquerdismo’ nasceu quando o povo passou a fazer parte do governo.
Direitos humanos não são uma pauta de esquerda, são uma pauta de todos.”
Texto e imagem reproduzidos do site: huffpostbrasil.com
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