quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Anne, que não tem medo de dizer que é 'ok ser mulher, negra e nerd'


Anne Quiangala, que não tem medo de dizer que é 'ok ser mulher, negra e nerd'

"Se você coloca ‘nerd’ no Google a imagem não vai ser de qualquer mulher negra nerd."

By RYOT Studio e CUBOCC

Preta, Nerd & Burning Hell. Este é o nome. Anne Quiangala, 28 anos, gosta disso. Cria vocabulário. E conteúdo, discussões, críticas, análises, referências. “Eu acho que o vocabulário é o que define o que a gente é capaz de fazer e ser. Por isso preta e nerd. Se você coloca ‘nerd’ no Google a imagem não vai ser de qualquer mulher negra nerd. Então quer dizer que não existe. E quando crio ‘preta e nerd’ existe um nome para isso, eu existo. Porque senão parece que não é o seu lugar”. Foi como ela se sentiu por muito tempo, na verdade.

Nascida no Espírito Santo em uma família de meninos, conta que sempre foi nerd e que gostava desde cedo das ditas “coisas de menino”. No entanto, sentia um estranhamento e falta de encaixe nos lugares. “Me identificava com isso e era meio esquisito. Cultura nerd tem muito a ver com consumo e eu nunca me dizia nerd. É um desconforto, como se ser nerd fosse uma coisa para brancos”. Porque, como explicou, não existia esse vocabulário para ela: negra e nerd. Mas é algo que ela sempre foi.

Após anos de estranhamento em diversos ambientes, ela criou um local em que pudesse se afirmar: o blog.

Desde pequena, é fã de quadrinhos, cultura pop, vídeo game, o pacote todo. Começou a jogar aos cinco e somente aos nove anos conheceu a primeira menina que também jogava. Pode, assim, migrar dos ambientes hostis de fliperama para jogar em casa. Uma grande conquista. E essa foi somente uma das situações que viveu para poder ser quem ela é. “Entrar em uma loja de quadrinhos é um constrangimento, acham que você não tem dinheiro para comprar. Você é negra, então você não pode ser nerd. Você vai comprar um quadrinho e vai aparece um cara branco te explicando o que é esse quadrinho que você compra toda mês. É um ambiente muito hostil”.

Após anos desse sentimento de estranhamento em diversos ambientes, ela criou um local em que pudesse se afirmar. Antes, quando estava em grupos de pessoas negras, por exemplo, ela era “nerd demais” para estar ali. “E me feria, como se para estar em alguns grupos eu tivesse que tirar um pedaço do corpo. Porque é quem você é. Identidade é uma coisa complicada, porque não necessariamente as pessoas veem, então era muito desconfortável ser negras em todas as situações, para além do racismo. Eu ficava pensando se era ok isso. Eu era diferente de quem parecia comigo e isso não parecia ok. A pessoa compra, assiste os filmes e não se sente confortável para dizer que é nerd?”

Entrar em uma loja de quadrinhos é um constrangimento, acham que você não tem dinheiro para comprar. Você é negra, então você não pode ser nerd.

Assim surgiu o blog. Ela viu uma oportunidade de discutir assuntos ligados a sua experiência pessoal como nerd e às informações de seus trabalhos de pesquisa que desenvolveu na faculdade de Literatura e que se preparava para estudar em seu mestrado – sempre com questões ligadas à cultura nerd e cultura pop. “No dia que eu fiz o blog falei: é isso. Vesti a manta e era isso mesmo. O blog veio dessa junção de uma questão acadêmica de fazer circular essa lógica e uma decisão muito pessoal também de fincar minha identidade de que eu sou negra e nerd e de que isso existe. Para mim foi um marco”.

Assim, quando entrou no mestrado, em 2014, viu a oportunidade de levar suas questões de pesquisa para um espaço fora da academia e, ao mesmo tempo, expor também suas experiências de desconforto inclusive no ambiente da universidade. “Eu gosto de cultura pop e tudo mais, mas eu era a pessoa que chegava no primeiro dia de aula e tinha lido os textos. E é desconfortável lidar com alunos que são muito interessados”.

O blog veio dessa junção de uma questão acadêmica e uma decisão muito pessoal de fincar minha identidade de que eu sou negra e nerd e de que isso existe.

E isso ela sempre foi. Na graduação, realizou vários Pibic (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica) porque tinha gosto por estudar e pesquisar. Além disso, sabe que sempre fez um esforço maior do que a maioria das pessoas. “Não era a única jovem [no mestrado], mas era negra, mulher e nova. Nem me achava tão jovem, eu tinha 24 anos, mas nesse contexto eu era. Sempre fui boa aluna porque, óbvio, tinha que fazer 30 vezes mais que todo mundo. Não é senso de superioridade, mas é um esforço além que você faz durante uma vida inteira. E isso não necessariamente vai gerar frutos, mas no fim das contas eu consegui chegar aonde eu cheguei muito por causa disso”.

Aos poucos, foi vendo que realmente gerou frutos e que o alcance de seu trabalho era grande. Deu aula no Ensino Médio e pode ser referência de outras garotas nerds e outras garotas negras, e outras garotas negras e nerds. Hoje, o blog, que começou como um projeto individual, cresceu e tem uma equipe de produção. O vocabulário chegou a muita gente. “Achei que o blog ia ser uma forma de mostrar para pessoas iguais a mim que não tiveram os mesmos acessos e vantagens que eu tive, de que é possível, é acessível. Acho bom fincar o pé no chão de que existe, porque aí, a medida que existe, várias pessoas se sentem confortáveis para se identificar”.

Achei que o blog ia ser uma forma de mostrar para pessoas iguais a mim que não tiveram os mesmos acessos e vantagens que eu tive, de que é possível, é acessível.

Várias pessoas se sentem confortáveis para ser. E parte do objetivo é ter uma abordagem diversificada sobre a questão e os pontos que envolvem a cultura nerd. “Acham que cultura nerd é para criança e o adulto que gosta é infantilizado e acho que podemos desconstruir isso... não é para rico, não é só para jovem e adolescente”. Toda a atuação de Anne leva em consideração esse olhar simultâneo para recortes de raça, gênero e classe. “Acho que hoje em dia a gente tem essa concepção que a interseccionalidade é muito necessária e precisamos disso, então com esse vocabulário real a gente consegue concretizar”.

Ela faz a sua parte. E comemora os avanços e os resultados. “Consegui com o tempo ter retornos muito legais de pessoas negras falando que agora se identificaram com o termo. Acho que cada vez mais tenho estudado e tenho vislumbrado um futuro de abranger e mostrar que é ok ser uma mulher, negra e nerd”.

É mais do que ok. É algo que existe. Com vocabulário, cor cara e significado.

Texto e imagem reproduzidos do site: huffpostbrasil.com

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