Hannah Arendt em um retratao tomado em 1949. (FRED STEIN
GETTY)
Publicado originalmente no site El País Brasil, 9 de novembro de 2018
Condições e significado da revolução
Em um ensaio que permaneceu inédito durante meio século,
Hannah Arendt investiga a relação entre liberdade e processos revolucionários
Por Hannah Arendt
A palavra revolução — como qualquer outro termo do nosso
vocabulário político — pode ser usada em sentido genérico, sem levar em conta a
origem da palavra nem o momento temporal em que o termo foi aplicado pela
primeira vez a um fenômeno político concreto. O pressuposto básico de
semelhante uso é que, independentemente de quando e por que o termo apareceu, o
fenômeno a que alude tem a mesma idade da memória humana. A tentação de usar a
palavra em sentido genérico é particularmente forte quando falamos de “guerras
e revoluções” ao mesmo tempo, porque de fato as guerras são tão antigas quanto
a história da humanidade desde que temos testemunho dela.
Talvez custe trabalho usar a palavra guerra em outro sentido
além do genérico, mesmo que seja somente porque sua primeira aparição não pode
ser datada no tempo e nem localizada no espaço, mas não existe uma desculpa
semelhante para o uso indiscriminado do termo revolução. Antes das duas grandes
revoluções que aconteceram no fim do século XVIII e do surgimento do sentido específico
que adquiriu em seguida, a palavra ocupava um lugar de destaque apenas no
vocabulário do pensamento e da prática política. Quando encontramos o termo no
século XVII, por exemplo, está ligado estritamente ao seu significado
astronômico original, que se refere ao movimento eterno, irresistível e
recorrente dos corpos celestes; a utilização política era metafórica e
descrevia o retorno a um ponto pré-estabelecido, por conseguinte, um movimento,
um retorno a uma ordem predeterminada. A palavra não foi usada pela primeira
vez quando estourou na Inglaterra o que podemos chamar efetivamente de
revolução e Cromwell se erigiu como uma espécie de ditador, mas em 1660,
durante a restauração da monarquia, depois da derrubada do Parlamento
Remanescente (Rump Parliament). Mas mesmo a Revolução Gloriosa, o acontecimento
graças ao qual o termo encontrou seu lugar, de forma muito paradoxal, na
linguagem histórico-política, não foi concebida como uma revolução, mas como a
restauração do poder monárquico à sua antiga retidão e glória.
O fato de a palavra revolução significar originalmente
restauração é mais do que mera curiosidade semântica
O verdadeiro significado do termo revolução, antes dos
acontecimentos do final do século XVIII, se manifesta talvez mais claramente na
inscrição presente no Grande Selo da Inglaterra de 1651, segundo a qual a
primeira transformação da monarquia em república significou: “Freedom by God’s
blessing restored” [liberdade restaurada pela bênção de Deus]”.
O fato de a palavra revolução significar originalmente
restauração é mais do que mera curiosidade semântica. Nem sequer as revoluções
do século XVIII podem ser entendidas sem indicar que estouraram acima de tudo
com a restauração como objetivo e que o conteúdo dessa restauração era a
liberdade. Nos Estados Unidos, nas palavras de John Adams, os homens que
participaram da revolução tinham sido “chamados [a ela] sem haver previsto e
não tiveram outra escolha a não ser fazê-la sem ter uma inclinação prévia”; a
mesma coisa se verifica em relação à França, onde, nas palavras de Tocqueville,
“teria cabimento acreditar que o objetivo da iminente revolução seria a restauração
do Antigo Regime, não sua derrocada”. E foi no curso das duas revoluções,
quando seus atores adquiriam consciência de que tinham embarcado em uma empresa
completamente nova e não no regresso a uma situação anterior, que a palavra
revolução adquiriu, portanto, o seu novo significado. Foi Thomas Paine, nem
mais nem menos, que ainda fiel ao espírito anterior propôs com toda a seriedade
chamar de “contrarrevoluções” tanto a Revolução Norte-americana quanto a
Francesa. Eu queria liberar esses acontecimentos tão extraordinários da
suspeita de que com eles se tinha dado vida a começos completamente novos,
assim como da rejeição motivada pela violência com a que tais acontecimentos se
tornaram irremediavelmente ligados.
É muito provável que tenhamos esquecido a expressão de um
horror quase instintivo na consciência daqueles primeiros revolucionários
diante de algo completamente novo. Isso é possível em parte porque estamos
perfeitamente familiarizados com o entusiasmo dos cientistas e filósofos da
Idade Moderna por “coisas que nunca haviam sido vistas antes e ideias que nunca
tinham ocorrido a ninguém até a data”.
O que aconteceu no fim do século XVIII foi, na verdade, uma
tentativa de restauração e recuperação de antigos direitos e privilégios que
acabou justamente no contrário
É também porque nada do que aconteceu no curso dessas
revoluções é tão notável e tão surpreendente quanto o enfático destaque feito
em relação à novidade, repetida várias vezes por atores e espectadores ao mesmo
tempo, insistindo que nunca se havia produzido até então nada comparável por
seu significado e grandeza. A questão crucial e complexa é que o enorme pathos
da nova era, o Novus Ordo Seclorum, que ainda aparece escrito nas notas de um
dólar, se impôs somente quando os atores da revolução, em boa parte contra sua
vontade, chegaram a um ponto de não retorno.
Assim, o que aconteceu no fim do século XVIII foi, na
verdade, uma tentativa de restauração e recuperação de antigos direitos e
privilégios que acabou justamente no contrário: no desenvolvimento progressivo
e na abertura de um futuro que desafiava qualquer tentativa posterior de agir
ou pensar em termos de movimento circular ou rotativo. E enquanto a palavra
revolução foi transformada radicalmente no processo revolucionário, algo
semelhante aconteceu, mas infinitamente mais complexo, com a palavra liberdade.
Embora com ela não se pretendesse indicar nada mais do que a liberdade
“restaurada pela bênção de Deus”, continuaria se referindo aos direitos e
liberdades que hoje associamos com o governo constitucional, o que é
adequadamente chamado de direitos civis. Entre estes não se incluía o direito
político de participar nos assuntos públicos. Nenhum dos outros direitos,
incluindo o direito de ser representado para fins tributários, foi resultado da
revolução, nem na teoria nem na prática. O revolucionário não era a proclamação
de “vida, liberdade e propriedade”, mas a ideia de que eram direitos
inalienáveis de todos os seres humanos, independentemente do local onde
vivessem ou do tipo de governo que tivessem. E mesmo nessa nova e
revolucionária extensão para toda a humanidade, a liberdade não significava
mais que a autonomia diante de todo impedimento injustificável, isto é, algo
essencialmente negativo. Os direitos civis são resultado da libertação, mas não
constituem em absoluto a autêntica substância da liberdade, cuja essência é a
admissão na esfera pública e a participação nos assuntos públicos.
Nenhuma revolução, independentemente da amplitude com que
abre suas portas às massas e aos oprimidos, nunca foi iniciada por eles
Nenhuma revolução, independentemente da amplitude com que
abre suas portas às massas e aos oprimidos — les malheureux, les misérables ou
les damnés de la terre, como os chamamos em virtude da retórica grandiloquente
da Revolução Francesa — nunca foi iniciada por eles. E nenhuma revolução jamais
foi obra de conspirações, de sociedades secretas ou de partidos abertamente
revolucionários. De modo geral, nenhuma revolução é possível onde a autoridade
do Estado está intacta, o que, nas condições atuais, significa ali onde se pode
confiar que as Forças Armadas obedecerão às autoridades civis. As revoluções
não são respostas necessárias, mas respostas possíveis à delegação de poderes
de um regime; não a causa, mas a consequência do desmoronamento da autoridade
política. Em todos os lugares em que se permitiu o desenvolvimento
descontrolado desses processos desintegradores, geralmente durante um período
prolongado de tempo, podem acontecer revoluções, desde que exista um número
suficiente de pessoas preparadas para o colapso do regime existente e para a
tomada do poder.
Hannah Arendt (1906-1975) é uma das pensadoras mais
influentes do século XX. Este texto é parte do ensaio La Libertad de Ser
Libres, publicado recentemente na Espanha pela editora pela Taurus.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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