domingo, 22 de julho de 2018

Neto Lucon entrevista bancária travesti Rafa Silveira

Josie Rafa Silveira trabalha no Banco do Brasil

Publicado originalmente no site NLucon, em 20 de julho de 2018

“Se o chefe diz ‘não seja transfóbico’, há mudanças”, diz bancária travesti Rafa Silveira

Por Neto Lucon 

Josie Rafa Silveira trabalha como bancária do Banco do Brasil desde 2015. Quando entrou, ainda era vista como um rapaz. Ainda que soubesse que se identificava com o gênero feminino  desde os 17, ela não havia revelado ao mundo que é uma mulher trans ou travesti (que também ela usa por ativismo).

A profissional ainda precisava resolver questões internas que envolviam diversas precauções e a transfobia internalizada. Ainda assim, vez ou outra ela colocava os pés para fora do armário, bem como no dia em que apareceu “montada” em uma festa da empresa, indo trabalhar no dia seguinte de menino.

Dois anos depois, o próprio Banco do Brasil deu um passo à frente e passou a normatizar  o nome social e a identidade de gênero de funcionárias e funcionários trans. Foi o passo fundamental para que Josie, aliada a uma experiência significativa no Centro Espírita, precisava para se sentir acolhida e dizer ao mundo e ao trabalho que é uma travesti.

Aos 28 anos, ela conversa com o NLUCON e fala sobre a experiência dentro do maior banco do país e de como a comunicação interna tem beneficiado a inclusão, acolhimento e respeito da população LGBT no espaço. Não só as que trabalham lá, mas também clientes e a própria empresa. Acompanhem  essa aula exclusiva!

– Conheci algumas funcionárias de banco que são trans que durante muito tempo precisaram fingir que são homens para conseguir trabalhar. Isso também aconteceu com você em algum momento? Como foi a sua vivência trans enquanto bancaria do Banco do Brasil?

Eu entrei no Banco do Brasil em 2015 ainda sendo vista como um menino. A primeira coisa que eu fiz quando entrei no banco foi começar a hormonioterapia. Mas só mudei de gênero mesmo no começo de 2017. Eu já tinha consciência de que era trans desde os 17, mas resolvi fazer todo o processo bem devagar. Eu conheço uma trans do banco que virou a chave de um dia para o outro e foi montada para o banco. Mas comigo as coisas foram acontecendo aos poucos.

– Durante o tempo em que você não havia passado pela transição, as pessoas sabiam que aquele aparente rapaz que trabalhava era na verdade uma menina?

Durante esse tempo, talvez eu me encaixasse na definição de crossdresser. Trabalhava de menino, mas saía nas festas de menina. O pessoal do banco via, mas não comentava nada. No final de 2016, eu fui de menina na festa do banco e depois continuei a trabalhar de menino. Acho que era medo de fazer a transição de uma vez, não saber se era o que eu queria e voltar. Por isso fiz tudo por etapas, para ter certeza que era isso que eu sou, o que eu quero. Porque, apesar de eu saber isso hoje, naquela época eu ainda achava que ser trans era algo vergonhoso. Era uma transfobia internalizada, que eu precisava superar.

– Nossa sociedade ainda confunde muito a transgeneridade/transexualidade com a homossexualidade. Foi muito tranquilo para você se entender enquanto mulher trans pansexual e estar em um relacionamento com uma mulher cis?

Eu vivi um pouco dessa negação e confusão. Eu me identifiquei como trans aos 17 anos, mas pensava: por que vou passar por toda essa transição se eu gosto de mulher? Então fiquei nessa de “vou ou não vou?” por quase cinco anos. Com 23  eu comecei a perceber que não dava mais. Eu sou uma mulher trans mesmo. Estava escondida dentro de mim, mas já sabia. Quando me assumi trans, alguns amigos brincavam: “bicha, você precisa de um pinto”, porque para muita gente se você é mulher você tem que gostar de homem. Eu já pensei da mesma forma, mas hoje sei que sou uma mulher trans que me relaciono com mulheres. Afinal quem eu sou, ou seja, minha identidade de gênero, não está ligada por quem eu me atraio, a minha orientação sexual.

– Ocorreu algum start para que você estivesse certa de sua identidade de gênero?

Teve. Eu sou espírita e estava fazendo um trabalho voluntário no Lar dos Velhinhos em março do ano passado. Em uma das horas em que a gente estava rezando, uma das médiuns disse que o meu anjo da guarda tinha um recado para mim.  Ele havia mostrado as fases da lua e pedido para eu finalmente escolher. Aquilo tinha relação com a minha fase e que eu precisava finalmente dizer ao mundo a mulher que sou. Poxa, se até o meu anjo da guarda estava falando para eu sair de cima do muro e do armário, então vou embora (risos).

– Como foi revelar-se mulher trans no trabalho?

No começo de 2017, saiu uma matéria na Agência de Notícias interna do Banco do Brasil falando sobre o respeito ao nome social de funcionárias trans. Umas semanas depois, um colega meu perguntou: “Como vou te chamar?”. Eu falei que era uma menina e que ele poderia me chamar de Rafa.

– E todo mundo respeitou seu nome social e a sua identidade de gênero de cara?

O pessoal já me chamava de Rafa, mas era “o” Rafa. Como a minha chefe era uma mulher (cis) e a equipe não tem nenhum troll, todo mundo foi muito empático. Não tive problema com a equipe. O máximo que acontece é curiosidade, aquela coisa de amigo querer perguntar alguma coisa e tal, mas nunca discriminação. Isso não quer dizer que não acontece em outros espaços e que não tenha acontecido em outros momentos. Então a gente vê as mudanças que ocorreram de lá para cá.

 Josie Rafa diz que foi acolhida desde a transição 

O crachá de Josie Rafa no Banco do Brasil

– Você acha realmente que a transfobia vem diminuindo?

Acho que as coisas para nós estão melhorando em alguns espaços por questão de comunicação interna. Porque o Banco tem uma postura institucional de apoio à diversidade. Então, isso faz com que o pessoal pense duas vezes antes de fazer uma piadinha. É por isso que as coisas estão melhorando. As pessoas não mudam de um dia para o outro, mas se o chefe diz: “Não faça, não seja transfóbico”, o funcionário não faz.

– Você está dentro de um grupo que discute a diversidade dentro do Banco do Brasil, certo? Como e quando surgiu esse grupo?

Em um evento da empresa, um homem trans tornou a sua identidade de gênero pública. Aí com essa fala, eu pensei: “nossa, não estou sozinha”. Fui atrás dele e conheci outra pessoa trans. Daí foram uma dúzia de pessoas trans que a gente conheceu, além dos 300 LGBTs assumidos. Formamos o grupo, que é voluntário, não formalizado e que todos os encontros são feitos fora do ponto e por conta nossa. O nosso grupo se reúne para trazer diversas discussões sobre diversidade. A gente vê questões que para o hétero cis é diferente do LGBT e debate para tentar mudar.

– Que tipo de questões, por exemplo?

Vimos que o cadastro para a união de pessoas héteros era de um jeito, mas para a união homoafetiva era de outro. Então conseguimos deixar igual. Sinto que a discussão tem evoluído. A gente está em contato em grandes instâncias da empresa, vendo o que pode ou não ser realizado. Mas de qualquer maneira, estamos conseguindo ser ouvidos.

– De qual maneira essas ações voltam para os funcionários e funcionárias LGBT?

O pertencimento é muito importante e ajuda no cotidiano, pois acabamos sabendo que não estamos sozinhos.

– De alguma maneira falar sobre diversidade também contribui para os clientes?

Com certeza. A gente teve um episódio que foi com uma mulher trans bastante conhecida, que reclamou nas redes sociais que não foi respeitada por seu nome social no Banco. Um dos integrantes do grupo LGBT do banco viu, ligou para a comunicação e resolveu o problema. Ligou para o gerente e falou: “É Letícia, chame-a de Letícia”. E isso aconteceu com a ajuda de um dos nossos.

– Qual é a contribuição que a própria empresa tem ao discutir diversidade?

A diversidade é boa, há estatísticas que mostram que a diversidade melhora o ambiente e que quanto mais diverso ele é, mais produtivo ele é. é. Então, acho que a empresa ganha na produtividade dos funcionários que são LGBTs, no atendimento aos clientes, em tudo o que se desenrola a partir disso e no respeito, que deve vir acima de tudo. Só há experiências positivas de se incluir e acolher a diversidade.

– O que ainda hoje a sociedade e as empresas precisam saber sobre as pessoas trans e travestis?

Acho que a gente tem que parar com a discussão de genital. Você não está vendo a pessoa sem roupa, então que diferença faz o genital dela? Se você está vendo uma mulher, é uma mulher. Se você está vendo um homem, é um homem. Simples assim. Se o olhar fosse simples desse jeito todo o preconceito cairia. É um ser humano como qualquer outro, com um genital que você não vai ver.

– Como é ser uma mulher trans bancária? Como é sua rotina dentro do Banco?

Não acho que tenho rotina, pois meus horários são diversos. Dentro da empresa, quando alguém olha para o meu crachá, fala: “Nossa, você existe”. Mas quando eu comento para o pessoal de fora, de outras empresas, elas ficam surpresas. Inclusive quem apoia a causa acha lindo. Dizem: “Que bom que existe, que está tendo pessoas trans empregadas”. Eu concordo.

Texto e imagens reproduzidos do site: nlucon.com

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