segunda-feira, 23 de julho de 2018

O Início, o Fim e o Meio


O Início, o Fim e o Meio 

Em seu novo livro, Yuval Noah Harari, que sintetizou o passado em Sapiens e vislumbrou o futuro em Homo Deus, volta-se para o presente – e as lições que a humanidade tem que aprender para sobreviver ao século 21

Por Ivan Marsiglia

YUVAL NOAH HARARI é uma espécie rara de escritor. Aos 42 anos, ele alia como ninguém profundos conhecimentos em ciência, história e filosofia com um texto fluido e uma capacidade extraordinária de se comunicar. Seu primeiro grande livro, Sapiens – Uma Breve História da Humanidade, que resume em 459 páginas os 70 mil anos de história do gênero humano na Terra, foi lançado em 2011 em Israel, terra natal de Harari, e já vendeu 1 milhão de cópias no mundo todo. Na sequência veio Homo Deus – Uma Breve História do Amanhã (2015), que especula sobre os efeitos de uma tecnologia que se expressará no próprio corpo dos indivíduos, outro best-seller imediato. Agora, ele prepara o lançamento da conclusão dessa trilogia: 21 Lições para o Século 21, com lançamento mundial a partir de agosto (a edição brasileira sai pela Companhia das Letras).

Na entrevista a seguir, concedida com exclusividade para a revista cultura, este PhD em História pela Universidade de Oxford e professor da Universidade Hebraica de Jerusalém fala dos riscos que ameaçam o ser humano de extinção neste decisivo século 21. Relata o tsunami que a celebridade causou em sua antes pacata vida de acadêmico. Descreve o cotidiano simples que procura manter ao lado do marido e do cachorro. Ressalta o papel fundamental da yoga e da meditação para manter a tranquilidade de sua mente hiperativa. E chama a atenção para as contradições do progresso na análise da crise brasileira.

Seu primeiro livro, Sapiens, fala de nossa origem: sobre como uma espécie fisicamente frágil conseguiu dominar o planeta. O segundo, Homo Deus, é focado em para onde vamos: um futuro de alta tecnologia povoado por super-humanos, enfrentando riscos terríveis. Por que falar sobre o presente agora?

Porque as pessoas me perguntaram sobre ele. 21 Lições foi escrito a partir do diálogo que mantive com o meu público. Ele se baseou em conversas que tive, entrevistas que dei e conferências que ministrei no mundo inteiro ao longo dos últimos anos. Muita gente me questionou sobre temas como imigração, terrorismo, fake news e a crise das democracias liberais. Meu novo livro é uma tentativa de dar resposta a essas questões.

21 Lições para o Século 21 elenca vários problemas com os quais a humanidade está lidando hoje. Qual é o mais urgente deles e o que você propõe como solução?

O desafio mais imediato é a ascensão dos fundamentalismos e nacionalismos. A humanidade enfrenta neste momento três grandes riscos: a guerra nuclear, as mudanças climáticas e as tecnologias disruptivas. Todas questões globais por natureza, que só podem ser resolvidas por meio de cooperação internacional. Nenhum país sozinho poderá deter o aquecimento global ou evitar a guerra nuclear, assim como uma nação só não terá como definir regras seguras para a bioengenharia ou a inteligência artificial. Não será suficiente se apenas a China decidir reduzir suas emisões de gases de efeito estufa, enquanto os EUA continuarem a fazer seus negócios como de costume, nem será de grande ajuda se a União Europeia proibir a produção de robôs militares assassinos, mas Rússia e Israel autorizarem sua produção. De forma análoga, temos que criar uma rede global de segurança para proteger os humanos contra os choques econômicos que a introdução da inteligência artificial causará. A automação irá produzir imensas riquezas em hubs de alta tecnologia como o Vale do Silício, mas seus efeitos nefastos serão sentidos em países em desenvolvimento como Honduras e Bangladesh. Haverá mais empregos para engenheiros de software na Califórnia, mas menos empregos para operários da indústria têxtil ou motoristas de caminhão hondurenhos. Os governos norte-americanos aumentariam os impostos dos gigantes da alta tecnologia no Vale do Silício para sustentar ou reciclar desempregados hondurenhos? É improvável. Vivemos hoje numa economia global, mas a política é ainda muito nacional. A menos que encontremos soluções em nível global para as disrupturas causadas pela tecnologia, países inteiros poderão colapsar – e o caos resultante, a violência e as ondas de imigração irão desestabilizar o mundo inteiro. É por isso que a atual onda de xenofobia e nacionalismo é tão perigosa: não haverá soluções nacionais para os problemas globais.

Então será preciso constituir uma espécie de governo global?

A ideia de um “governo global” é duvidosa e irrealista. Em vez disso, acho que políticos nacionais e mesmo municipais deveriam dar mais peso às questões globais. Por isso, na hora de escolher um governador de Estado ou um prefeito, precisamos levar em conta tanto suas políticas voltadas para as questões globais quanto para as locais. É importante que a gente se lembre de que não há nada de natural ou eterno sobre as nações. Nenhuma das nações existentes hoje no mundo estava aí há 5 ou 50 mil anos. E, ao contrário do que alguns dizem, o sentimento de nacionalismo não tem raízes na biologia humana. Humanos são animais sociais com a lealdade ao grupo impressa em seus genes. Entretanto, por centenas de milhares de anos viveram em comunidades compostas por poucas dúzias de pessoas. Desenvolvemos lealdades a pequenos grupos como uma tribo, uma companhia de infantaria ou uma empresa de família, mas é pouco natural nos sentirmos leais a milhões de completos estranhos. Esse tipo de lealdade de massa surgiu só há poucos milhares de anos – na manhã de ontem, em termos evolucionistas – e requer um imenso esforço de construção social. As pessoas só construíram essas coletividades nacionais porque foram confrontadas com desafios que não podiam ser resolvidos por nenhuma tribo isoladamente. Agora, enfrentamos desafios que não podem ser solucionados por nenhuma nação sozinha – então precisamos transcender a nação e forjar lealdades globais.

Nesse contexto, o que a vitória de Trump e a ascensão da extrema-direita na Europa significam?

Há políticos demais tentando nos vender fantasias nostálgicas em vez de preparar o nosso futuro. Isso acontece porque a maioria das pessoas não quer mudanças radicais e teme o desconhecido. Elas querem estabilidade e uma identidade segura que dê sentido às suas vidas. A atual onda de visões políticas nostálgicas tem mais a ver com o passado do que com o futuro: políticos de diversos países, incluindo os EUA, Inglaterra, Rússia e Índia, estão guinando para o nacionalismo tradicional ou religioso, prometendo um retorno a uma espécie de passado dourado. No meu próprio país, Israel, o governo usa a Bíblia e as tradições judaicas para justificar suas ações. É confortável recorrer ao nacionalismo e à religião porque eles oferecem explicações simples sobre o que está acontecendo no mundo, sobre quem somos nós e qual o significado de nossas vidas. Eles pretendem nos oferecer uma âncora de certezas em um mundo tempestuoso. Infelizmente, eles não serão capazes de resolver os enormes problemas em que estamos mergulhados neste século 21. Como lidar com o aquecimento global? O que fazer quando a tecnologia empurrar bilhões de pessoas para fora do mercado de trabalho? Como fazer uso do enorme potencial da engenharia genética? Você não vai encontrar esse tipo de resposta na Bíblia. A realidade no século 21 é tão assustadora que eu entendo por que algumas pessoas preferem olhar para o outro lado. Mas não temos escolha.

Você já declarou que “a crise ecológica no século 21 irá provocar uma aceleração do progresso tecnológico semelhante à causada pelas duas guerras mundiais do século 20”. Esse progresso será capaz de evitar a destruição do planeta?

Espero que sim. Mas se levarmos em conta o momento atual de desenvolvimento da tecnologia, a única maneira de deter a mudança climática seria freando o crescimento econômico. Só que o crescimento é a prioridade número 1 de quase todos os países e governos. Por isso, precisamos desenvolver novas tecnologias verdes que sustentem o crescimento econômico sem destruir o ecossistema. Um exemplo é a pecuária. A produção industrial de carne é uma das maiores causas de poluição do ar, da terra e das águas, além de responsável por uma grande porcentagem das emissões de gases de efeito estufa. Uma maneira ética e ecológica de resolver o problema é desenvolver a chamada “carne cultivada” – produzir carne a partir da multiplicação de células em vez de criar animais inteiros para abatê-los. O primeiro hambúrguer cultivado surgiu em 2014 e custou US$ 300 mil. Foi só um primeiro experimento: atualmente o preço já caiu para US$ 11 e, com mais pesquisas e produção em escala industrial, a carne cultivada pode ser mais barata que a atual. Por que gastar tanto dinheiro criando uma vaca inteira quando você pode fazer crescer um bife?

Você sempre diz que a pecuária atual “é provavelmente o maior crime da história”. Por quê?

Bilhões de animais domesticados, como vacas e galinhas, são tratados pela indústria de carne, laticínios e ovos como máquinas, não como criaturas vivas capazes de sentir dor e angústia. E a ciência nos mostra que vacas e galinhas vivenciam um mundo complexo de emoções e sensações. Elas são capazes de sentir dor, medo e ansiedade, além de alegria, tranquilidade e amor. Ainda assim, os humanos ignoram completamente seu sofrimento. Toda a indústria de laticínios, por exemplo, é baseada no rompimento dos laços de amor entre mães e filhotes. Uma vaca jamais produz leite a menos que engravide e dê à luz um bezerro. Mas aí os humanos retiram o bezerro dela para ser abatido e ordenham o leite da vaca. Um processo que provoca dor e agonia a milhões desses animais a cada ano. Julgada pela quantidade de sofrimento que produz, a pecuária moderna é provavelmente um dos piores crimes da história. Seria muito mais ético alimentar as pessoas com uma dieta baseada em vegetais – que é também mais ecológica. Produzir carne usa muito mais recursos e gera muito mais poluição do que produzir a quantidade equivalente de alimentos vegetais. Por exemplo, são necessários cerca de 15 mil litros de água doce para produzir um quilo de carne, em comparação com os 287 litros necessários para produzir um quilo de batatas. Para quem não quiser se tornar vegetariano, espero que em uma década ou duas possamos produzir carne limpa em escala industrial.

Sapiens mostra como a nossa espécie superou outros membros do gênero Homo que não sobreviveram. Como seria o mundo hoje se o Homo rudolfensis ou o Homo neanderthalensis tivesse prevalecido?

Essa é fácil. Até onde se pode especular, o mundo ainda estaria na Idade da Pedra. Teríamos alguns milhões de humanos vivendo na África, Ásia e Europa, sem agricultura, indústria ou cidades. Não haveria nenhum homem na América, que seria ainda um continente dominado por mamutes, tigres-dente-de-sabre, preguiças-gigantes e outros animais que o Homo sapiens levou à extinção depois que a colonizou.

Ter se transformado num best-seller internacional mudou de que maneira a sua vida?

Mudou minha vida de muitas maneiras. Abriu novas possibilidades, mas também criou uma série de problemas. Obviamente, estou muito satisfeito com o sucesso – é bom saber que, depois de trabalhar tanto para pesquisar e escrever Sapiens e Homo Deus, esses livros alcançaram pessoas e as ajudaram a entender melhor o mundo. No entanto, há também um lado negativo. Tenho muito menos tempo do que antes e muito mais compromissos. Passo muito tempo repetindo o que já sei e tenho menos tempo para explorar novos conhecimentos. Sou obrigado a desapontar muito mais pessoas. Há dez anos, ninguém sabia quem eu era e ninguém esperava nada de mim. Agora, recebo inúmeros pedidos de entrevistas, palestras e projetos, e tenho de dizer “não” a 99% deles. Faço um enorme esforço para dedicar tempo à minha família, aos meus amigos e a mim mesmo. E procuro manter uma rotina diária. Começo o meu dia meditando por uma hora. Então, tomo café da manhã e trabalho por cerca de 6 ou 7 horas no computador. Aí faço yoga e levo meu cachorro para passear por cerca de uma hora na floresta próxima de casa – o cachorro é só um pretexto para eu poder contemplar algumas árvores e animais, e não apenas computadores e e-mails. Então, eu sento para mais uma hora de meditação. Meu marido e eu às vezes saímos para encontrar amigos ou assistimos a um filme antes de dormir.

A meditação o ajuda a lidar com essa vida de celebridade?

Ser uma celebridade envolve tanta pressão e distrações que eu não sei como poderia lidar com isso sem o foco e a paz proporcionados pela meditação. Pratico há quase vinte anos Vipassana, uma técnica baseada na percepção de que o fluxo da mente está intimamente ligado às sensações corporais. Entre mim e o mundo, há sempre sensações corporais: eu não reajo aos eventos do mundo exterior, reajo às sensações que eles provocam no meu corpo. Quando a sensação é desagradável, sinto aversão. Se é agradável, desejo mais. Mesmo quando penso que estou reagindo a uma memória antiga de infância ou ao que alguém escreveu sobre mim no jornal, a verdade é que tudo se dá no meu corpo. Vipassana me treina a me concentrar no que está acontecendo dentro de mim, e não no mundo exterior, revelando assim os padrões básicos da minha mente. O sofrimento não é uma condição objetiva no mundo exterior, é uma reação gerada pela nossa mente. Além de meditar, a cada ano faço um longo retiro por um mês ou dois. Não é uma fuga da realidade, é o contrário: sinto que por pelo menos duas horas por dia eu realmente observo a realidade como ela é. Nas outras 22 fico sobrecarregado com e-mails, tuítes e vídeos engraçadinhos de gatos.

Lendo seus livros têm-se a impressão de que você é fascinado pelo progresso tecnológico e que, no fim das contas, acredita que seus efeitos perversos serão controlados pela moralidade humana. Mas avanços como a inteligência artificial não podem nos tornar simplesmente incapazes de decidir nossos destinos?

Certamente o risco é imenso. Mas acredito que a humanidade será capaz de enfrentar o desafio. A tecnologia nunca é determinista: podemos usar os mesmos avanços para criar tipos muito diferentes de sociedades e situações. No século 20, as pessoas usaram a tecnologia da Revolução Industrial – trens, eletricidade, rádio, telefone – tanto para criar ditaduras comunistas e fascistas quanto democracias. Coreia do Sul e Coreia do Norte tiveram acesso à mesma tecnologia, mas optaram por empregá-la de formas distintas. No século 21, a inteligência artificial e a biotecnologia vão mudar o mundo, mas não precisamos ser fatalistas. Como usar a tecnologia sabiamente é a questão mais importante que a humanidade enfrenta hoje – mais importante que a crise econômica, as guerras no Oriente Médio ou a crise de refugiados na Europa. O futuro não só da humanidade, mas provavelmente da própria vida na Terra, depende de como escolheremos usar a IA e a biotecnologia.

O Brasil sempre foi considerado uma espécie de “laboratório do futuro”, no bom e no mau sentido: um caldeirão de culturas aberto a diferentes nacionalidades e uma sociedade desigual e violenta. Hoje, após um período de relativo avanço social, o país enfrenta uma grave crise. O que você poderia dizer aos leitores brasileiros sobre as contradições do progresso?

O progresso resolve questões antigas e cria novas. As pessoas então tomam como certas as conquistas do passado, concentram-se nos problemas do presente e concluem que “as coisas nunca foram tão ruins”. É uma ilusão. Apesar da crise, o Brasil está em uma situação muito melhor do que há 50 ou 100 anos. Mesmo brasileiros pobres têm hoje menos probabilidade de morrer de peste, fome ou violência do que em 1968 ou 1918. Claro que isso não nega os imensos problemas que o Brasil enfrenta, mas nos adverte contra a crença de que “nenhum progresso aconteceu, a situação é tão ruim como sempre, o sistema está corrompido até o osso e nada, exceto uma revolução completa, irá melhorar as coisas”. Ao longo da história humana, aqueles que prometeram soluções mágicas e rápidas para os problemas acabaram causando mais violência e miséria – como nas revoluções russa e chinesa. Como eu disse no início da entrevista, hoje o futuro do Brasil não depende apenas dele mesmo, mas do estabelecimento de uma melhor cooperação global entre os países. O governo brasileiro, por si só, não poderá protegê-lo contra as ameaças do aquecimento global e da ascensão da IA. No entanto, como líder da América Latina e possivelmente a mais pacífica das grandes potências do mundo, o Brasil tem muito a contribuir para essa cooperação global. É um país que faz fronteira com outras dez nações, mas por mais de um século não invadiu nenhuma outra. Se os brasileiros puderem ensinar seu segredo a outras potências do mundo, será uma grande bênção para a humanidade.

Texto e imagem reproduzidos do site: livrariacultura.com.br

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