segunda-feira, 12 de março de 2018

Entrevista - Sérgio Sá Leitão, Ministro da Cultura

Foto: Ronaldo Caldas

Publicado originalmente no site da revista Veja, em 12 mar 2018

Entrevista - páginas amarelas da revista Veja - Sérgio Sá Leitão

Brasília é uma ilha da fantasia

Sérgio Sá Leitão, o ministro da Cultura, diz que a Esplanada se descola da realidade e conta como está tentando resolver a escassez de verbas

Por Maria Clara Vieira

Em junho de 2017, o carioca Sérgio Sá Leitão, 51 anos, assumiu um compromisso com prazo de validade: chefiar o Ministério da Cultura do governo de Michel Temer, pasta pela qual já haviam passado dois nomes em um só ano e cuja extinção chegou a ser aventada pelo presidente – ideia que provocou revoltas furiosas na classe artística. Sá Leitão, antes diretor da Agência Nacional de Cinema (Ancine), herdou vários nós por desatar: o irrefreável contingenciamento de recursos anunciado no começo daquele ano, a crescente descredibilidade da Lei Rouanet e a ineficiência do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que até então destinava menos da metade de sua arrecadação para o mercado. Há um esforço recente especialmente neste último ponto. Nessa segunda-feira, o MinC anuncia o investimento recorde de 400 milhões em editais para linhas de produção de cinema e TV, aliados à promessa de mais 700 milhões até o fim de 2018. Nesta entrevista a VEJA, Sá Leitão explica os impactos do novo fundo e antecipa os planos para os próximos dez meses à frente da pasta.

Antes de assumir o Ministério da Cultura, o senhor escreveu um artigo no qual defendia a sua extinção. Mantém sua opinião? Sim. A existência do Ministério da Cultura como instituição não é decisiva. O que importa é a efetividade das políticas públicas voltadas para o setor cultural – que podem ser geridas por uma secretaria dentro do Ministério da Educação, por exemplo. A estrutura do MinC custa caro – mais de 2 bilhões de reais por ano – e boa parte deste dinheiro serve para pagar alugueis de espaços fora da Esplanada dos Ministérios, que não comporta todo o pessoal. Se metade destes recursos fosse voltada à atividade fim, a cultura teria muito a ganhar. A melhor alternativa seria a junção com o Turismo e o Esporte, como acontece na Inglaterra - áreas afins que compõem o que chamamos de economia criativa.

Tornar-se ministro após a publicação do artigo não o deixou desconfortável?

Nem um pouco. Já que há ministério de qualquer jeito, vi o convite como uma oportunidade para batalhar por mais recursos e colocar publicamente pontos de reflexão necessários para o funcionamento das políticas culturais.

O Ministério da Cultura sofreu cortes significativos por parte do governo. De onde vem agora tanto dinheiro para o audiovisual?

A principal fonte de arrecadação do fundo continua sendo a Condecine, taxa que incide sobre as transações realizadas no setor de audiovisual e telecomunicações desde 2002. Historicamente, 30% destes recursos são destinados à União, o que é previsto por lei, 20% têm sido contingenciados e os outros 50% vão efetivamente para o mercado. Acontece que o volume de recursos oriundos dessa norma é gigantesco: só neste ano, serão arrecadados cerca de 700 milhões de reais. Isso sem contar os resultados dos rendimentos financeiros do fundo, que não eram contabilizados. Neste anúncio, ainda estão contemplados recursos de 2017.

Por que os recursos não chegavam ao mercado?

Porque o excesso de burocracia gerava um hiato de até de dois anos entre a aprovação do projeto e a liberação do capital. Além disso, cerca de dois terços dos recursos eram destinados a linhas que demandam análise subjetiva do conteúdo, o que toma muito mais tempo do que as que requerem mecanismos automáticos. Por exemplo, até agora, os editais só contemplavam a produção, distribuição e exibição de cinema e TV. Não havia frentes para investir em preservação e digitalização de acervo ou infraestrutura - carência que se reflete na baixa competitividade dos nossos filmes. Os países que deram um salto na produção audiovisual, como a França e a Rússia, são exemplos de que para evoluir é preciso investir neste processo. O objetivo do novo fundo é facilitar o acesso dos produtores ao dinheiro, bem como ampliar as possibilidades de investimento.

As taxas do Condecine serão aplicadas às plataformas de vídeo on demand, como a Netflix?

Sim. Considero que é fundamental regulamentar a incidência da taxa sobre as plataformas de streaming, justamente porque todos os mercados pagam. Além disso, muitos canais de TV paga e aberta já possuem suas plataformas de VOD e a tendência é que isso tenha um peso cada vez maior no faturamento do fundo. É razoável supor que num futuro muito próximo haverá uma queda brusca na arrecadação de recursos caso a taxa não incida sobre o streaming.

Isso não trará prejuízos para o consumidor?

 Não. Ao planejar sua inserção no mercado brasileiro, muitas plataformas já inseriram a cobrança da Condecine em seus planos de negócio e têm sinalizado que se a tarifa for compatível com os demais segmentos, não haverá nenhum ônus para o consumidor. Além disso, a ausência de regulamentação tem inibido desenvolvimento do VOD no Brasil. Vários players querem oferecer serviços de streaming aqui e estão esperando porque consideram que é preciso estar claro como será cobrada essa taxa – o que ainda está em discussão na Ancine. O importante é que a regulação não imponha restrições que o impeçam o segmento de crescer.

Não há um descompasso entre os investimentos para o audiovisual e outras áreas da cultura?

Sem dúvida. O FSA conseguiu estabelecer uma fonte própria de recursos via Condecine, mas não temos um programa de investimento direto que abranja outras áreas. O orçamento destinado à manutenção de patrimônio histórico, por exemplo, recebeu 100 milhões de reais a menos do que o necessário. Isso é grave porque se não investirmos a tempo na restauração os imóveis podem sofrer danos irreversíveis.

O que fazer para evitar isso?

Tenho defendido junto ao presidente a aprovação de uma medida provisória que prevê o uso de recursos oriundos de loterias federais. A legislação existente já prevê a aplicação de 3% do faturamento da Caixa Econômica no setor cultural, mas este dinheiro é depositado no Tesouro e acaba sendo contingenciado. A ideia é fazer com que estes recursos sejam distribuídos por meio de editais publicados pelo MinC. Caso a medida seja aprovada, pode ser o principal legado dessa gestão.

Como é sua relação com a classe artística, que é predominantemente crítica do governo do qual o senhor faz parte?

Tenho ótima interlocução com o Movimento 342, criado por artistas de oposição ao governo. Costumo convidar as pessoas que têm convicções políticas diferentes das minhas a refletir sobre as políticas culturais de forma técnica. Assim, abrimos um campo onde as afinidades são muito maiores do que as divergências. Estamos, inclusive, rompendo tabus com lideranças cristãs, que também tinham receio de se aproximar do ministério.

Sendo um liberal convicto, não é contraditório defender a lei Rouanet, que condiciona o investimento cultural à regulamentação do Estado?

Tenho muita dificuldade de entender a crítica que os liberais fazem à lei Rouanet. Quando ela nasceu, na década de 1990, a esquerda atacava acusando-a de transformar a cultura em um negócio. Agora, é criticada pela direita como instrumento de cooptação. Vejo a lei como um mecanismo de empoderamento do contribuinte porque permite que ele decida se quer pagar até 6% de seu imposto para o governo ou apoiar um projeto cultural à sua escolha. A função do ministério é verificar se os projetos cumprem a finalidade cultural e se os orçamentos são adequados. Mas, como se sabe, isso nem sempre ocorre... Verdade. O que deve ser combatido é o dirigismo cultural – o direcionamento ideológico por parte do Ministério do que é ou não considerado cultura, algo que foi amplamente praticado em gestões anteriores. Voltando à questão com os evangélicos, desde o começo deixei claro para a minha equipe que não nos importa se o festival é de samba, jazz ou música gospel. Importa é que seja viável e rentável, de modo que as empresas interessadas possam investir com segurança.

Com tantos casos de inadimplência, pode-se dizer que a Lei Rouanet fugiu ao controle do governo?

 Sim. Mas isso foi consequência da negligência do Ministério nos últimos anos. Não é um problema intrínseco ao mecanismo.

Onde estão as falhas?

O Estado errou no cumprimento de suas únicas funções de analisar e acompanhar a execução dos projetos, de modo que chegamos ao ponto de ter um déficit de análise de prestação de contas de cerca de 25 000 projetos – quase a metade das iniciativas já fomentadas em 27 anos de Lei Rouanet. Uma de minhas maiores preocupações é fazer com que ela volte a ter credibilidade. Conseguimos resolver 2 500 casos de inadimplência em um ano e editamos uma nova instrução normativa, reduzindo pela metade o número de artigos que condicionavam a aprovação dos projetos. Também baixamos em um terço o tempo de análise das iniciativas. Acredito que agora a lei conseguirá cumprir sua função.

O senhor já fez críticas à chapa Dilma e Temer antes de assumir – chegou a dizer em um tweet, que “não tem bandidos de estimação” - e hoje tece elogios ao presidente. O que mudou? 

Nada mudou. Eu nunca me posicionei contra o governo Temer. Fui crítico ao governo Dilma do qual o atual presidente fez parte. Mas tenho uma identidade programática muito forte com as medidas que estão sendo tomadas pelo governo atual, sobretudo no campo das reformas. Não conhecia o presidente até o convite para assumir o Ministério e, desde então, vejo o esforço que ele está fazendo para colocar o país no trilho do desenvolvimento.

Como se sente diante das denúncias contra o presidente?

 Não afetam o meu trabalho. Acredito que qualquer atuação ilícita deva ser investigada e, se a culpa for comprovada, os responsáveis devem ser punidos. Isso não exclui ninguém.

A Paraíso do Tuiuti recebeu 500 000 reais via Lei Rouanet para o Carnaval. O senhor ficou incomodado de ver um desfile crítico ao governo? 

De jeito nenhum. A irreverência e a crítica estão na essência do Carnaval. O apoio aos desfiles não está vinculado aos seus enredos, mas ao reconhecimento de seu impacto na geração de renda para o país. Lamento apenas que muitos condicionem seu espírito crítico às afinidades políticas. Se tivéssemos mais livres pensadores, certamente teríamos visto críticas deste gênero nos governos anteriores, responsáveis por escândalos de corrupção escabrosos e por levar o Brasil à maior recessão da sua história. Se isso não é material para irreverência, não entendo o que pode ser.

Para o senhor, qual deve ser o perfil do novo presidente?

Torço para que o novo presidente seja alguém com uma visão de mundo liberal, que compreenda a importância da iniciativa privada para o desenvolvimento do Brasil. Vejo que há alguns nomes se colocando que de alguma forma se encaixam ao menos parcialmente nesse perfil. Estamos nos livrando em caráter definitivo do populismo, o maior mal político que acometeu a América Latina nas últimas décadas.

A intervenção militar no Rio foi uma ação populista?

Não. Melhorar a segurança pública é chave para colocar o Rio no ciclo de desenvolvimento econômico. A criminalidade atrapalha a agenda de eventos dedicados à cultura, esporte e turismo na cidade. A economia criativa responde por quase 8% do PIB do estado e é diretamente impactada pela sensação de insegurança. Por isso, participei das conversas sobre a intervenção e me posicionei desde o início a seu favor.

O senhor alimenta expectativas de continuar à frente da pasta no próximo governo? Não. Trabalho com o horizonte de 31 de dezembro e já avisei ao presidente que não serei candidato a nada. Espero tirar seis meses sabáticos para descansar e planejar o futuro.

Como você definiria sua experiência em Brasília?

Brasília me lembra o seriado “A Ilha da Fantasia”. Há um isolamento muito grande em relação à realidade do país. Não dá para fazer uma gestão adequada ficando apenas no Planalto. É preciso tomar um banho de realidade para perceber o quanto ainda há por fazer.

Texto e imagem reproduzidos do site: complemento.veja.abril.com.br

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