Supremo Convegno, obra censurada
Sala onde obra censurada foi exposta
Publicado originalmente no site Página B, em 7 de Março de 2018
Em 1895, a 1ª Bienal de Veneza põe a censura para correr
Igreja, governo, intelectualidade, políticos se confrontam
diante da obra mais ousada já mostrada em uma bienal, há 123 anos
Por Leonor Amarante
O primeiro grande escândalo de censura a uma obra de arte,
envolvendo até o Vaticano, ocorre em 1895, em plena Belle Époque, quando o
artista Giacomo Grosso envia à ª Bienal de Veneza a pintura Il Supremo
Convegno, que retrata um velório dentro de uma igreja, com cinco das amantes do
morto nuas, em poses lascivas, tendo uma delas o caixão mortuário entre suas
pernas abertas. O então obscuro pintor e professor de Turim quebra a banca,
incendia e assanha a icônica cidade italiana com uma ousadia até então nunca
vista. O quadro é o instantâneo de um mundo em crise, captado pelo olhar de um
artista libertário.
Grosso relaciona o erotismo e a morte e antecipa o
pensamento de George Bataille, que nasceu dois anos depois desse episódio, ao
atribuir ao erotismo e à “violência” uma dimensão religiosa, fazendo deles os
meios para se atingir uma experiência mística “sem Deus”.
Sob o título Prima Edizione della Manifestazione
Internazionale di Venezia, a Bienal surge em 1895 como modelo estruturante de
se expor arte e, cinquenta anos depois, a experiência se multiplica como
“praga” pelos cinco Continentes. A iniciativa da exposição parte de um grupo de
intelectuais que se reunia no Café Florian, o mais antigo do mundo, criado em
1720, que ainda hoje funciona na praça de San Marco.
Quando Il Supremo Convegno chega ao Giardini della Biennale,
onde até agora acontece a exposição, destrói a grande ilusão hegemônica da arte
submissa a reis e papas. Quebra todos os protocolos da Bienal, cria uma ponte
para um futuro onde o artista possa sonhar seu sonho e provoca enfrentamentos
artísticos, políticos, religiosos.
Com parte da população contra e outra a favor, o falatório
toma conta das pontes da cidade. Em outro patamar, políticos, religiosos e
intelectuais promovem a dialética que se manifesta frente a frente por meio de
cartas ou através de jornais. O cardeal de Veneza, Giuseppe Sarto, o futuro
Papa Pio X, também vai conferir a pintura e não gosta do que vê. Imediatamente
escreve ao então prefeito, Riccardo Selvatico, um intelectual de prestígio,
exigindo que o quadro não seja exposto. Habituado à polêmica, Selvatico, que
estava tentando um segundo mandato como prefeito de Veneza, defende o trabalho
de Grosso, afinal, não quer saber de confusão na festiva exposição que também
comemorava as bodas do rei Humberto I. Chama para uma reunião os intelectuais
simpatizantes da pintura, que criam uma comissão de defesa ao direito de
liberdade artística e, consequentemente, o trabalho do artista turinense. Para
dar força ao movimento, escolhem para representá-los e escrever a carta ao
prefeito, o escritor Antonio Fogazzaro, unanimidade no meio político e
religioso. A carta que o prefeito entregaria posteriormente ao cardeal, entre
outros argumentos diz: “Nos parece forte demais condenar a obra Il Supremo
Convegno em nome da moral… Nós, caro Riccardo Selvatico, respondemos
unanimemente não à censura. O quadro de Giacomo Grosso não é um ultraje à moral
pública, mas sim uma grande obra de arte”.
Depois de vários dias de debates, Il Supremo Convegno é
liberada com a condição de ser exibida em uma sala meio escondida. De nada
adianta. Uma multidão curiosa, com as mulheres vestidas elegantemente e com
sombrinhas de renda e os homens de fraque e cartola, enfrenta horas na fila
para ver as graciosas ragazze nuas. Grosso recebe o Prêmio Popular de Melhor
Obra, segundo os visitantes, e £1000, além de notoriedade. A pintura é
rapidamente comprada por £15.000 pela Venice Art Company, empresa americana que
organiza uma turnê para exibi-la nos Estados Unidos, onde o eco do escândalo já
tilintava nas caixas registradoras.
Sabendo da itinerância, os turinenses se perguntavam quando
e onde veriam o famoso quadro, feito por um artista da terra e que abalou a
toda poderosa Veneza. Foi o jornal local quem deu a triste resposta ao publicar
o incêndio ocorrido no local onde a controvertida pintura estava guardada,
antes de ser exposta aos americanos. Hoje só restam cópias da tela, fotos nos
arquivos da Bienal e no livro Biennale di Venezia, mas tudo isso me foi contado
por Luigi Carluccio, em 1984, na biblioteca da Bienal de Veneza, quando ele era
o presidente da instituição. Ria muito ao lembrar desse episódio que, para ele,
foi um dos mais saborosos que a Bienal de Veneza já produzira. Anos depois, em
1991, quando eu era comentarista de arte no programa Metrópolis, da TV Cultura,
entrevistei Leo Castelli, o famoso galerista de Nova York e mentor da pop art,
no hotel Regina, em Veneza. O câmera era o videomaker e meu amigo Rafael
França, do grupo Três Nós Três. Em meio a tantas histórias, Castelli sai com
essa: “Muitos italianos como eu gostam de Il Supremo Convegno porque nos remete
à alegria, sensualidade e sonho de liberdade até a morte”. Concordei e assinei
com ele.
No Brasil de hoje, com certeza Grosso teria sérios problemas
com a censura que insiste em nos intimidar. Talvez ele fosse encaminhado à
polícia, preso, e sua maravilhosa e ousada tela…execrada!
Texto e imagens reproduzidos do site: paginab.com.br
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