Cortella: 'Para quem está com o martelo na mão, tudo é prego'
Publicado no site da revista Carta Capital, em 05/12/2017.
Entrevista - Mario Sergio Cortella
"Mídias sociais favoreceram a imbecilidade"
Por Deutsche Welle
Cortella comenta a cultura do ódio que se disseminou pelo
país: na internet todos têm uma opinião, mas poucos têm fundamentos para
ancorá-la
Por Renata Martins
A instantaneidade e conectividade das mídias sociais
fomentam um ambiente hostil em que todos têm "alguma opinião sobre algo,
mas poucos têm fundamentos refletidos e ponderados para iluminar as
opiniões", diz o filósofo e professor universitário Mario Sergio Cortella,
em entrevista à DW Brasil.
Cortella é uma figura influente na sociedade brasileira como
palestrante, debatedor e comentarista de rádio. Com mais de um milhão de livros
vendidos entre seus 33 títulos lançados, Cortella traduz à linguagem coloquial
e adapta à realidade atual do Brasil complexos temas filosóficos, existenciais
e políticos como "se você não existisse, que falta faria?" ou "o
caos político brasileiro". Nesta entrevista, ele analisa como a cultura do
ódio é alimentada por "analfabetos políticos".
DW Brasil: Etimologicamente, a palavra "cultura"
(culturae, em latim) originou-se a partir de outro termo, colere, que indica o
ato de "cultivar". Podemos considerar que a "cultura do
ódio", que se vê eclodir na sociedade brasileira, é algo que já estava
presente nas relações sociais, vem sendo cultivado e agora encontrou o tempo
ideal para a "colheita"?
Mario Sergio Cortella: O ódio é uma possibilidade latente,
mas não é obrigatório. Contudo, não havia tanta profusão de ferramentas e
plataformas para que fosse manifestado e ampliado como nos tempos atuais no
Brasil. A instantaneidade e a conectividade digital permitiram que um ambiente
reciprocamente hostil – como o da fratura de posturas nas eleições gerais do
final de 2014 – encontrasse um meio de expressão mais veloz e disponível, sem
restrição quase de uso e permitindo que tudo o que estava aprisionado no campo
do indivíduo revoltado pudesse emergir como expressão de discordância virulenta
e de vingança repressiva.
DW: Qual o papel das redes sociais nesse fenômeno? Você
concorda com Umberto Eco, para quem as mídias sociais deram o direito à fala a
legiões de imbecis?
MSC: As mídias sociais favoreceram, sim, o despontar de um
palanque também para a imbecilidade e a idiotia. Antes delas, era preciso, para
se manifestar, algum poder mais presente ou a disponibilidade de uma tribuna
mais socialmente evidente. Agora, como efeito colateral da democratização da
comunicação, temos o adensamento da comunicação superficial, na qual todos têm
(e podem emprestar) alguma opinião sobre algo, mas poucos têm fundamentos
refletidos e ponderados para iluminar as opiniões. Como dizia Hegel: "quem
exagera o argumento, prejudica a causa".
DW: Por que pensar e se expressar de forma distinta daquilo
"com o que eu concordo" passou a ser o estopim para reações de ódio
exacerbado no Brasil?
MSC: Uma sociedade antes fragmentada concentrou-se em ser
mais dividida. Isto é, dois lados em confronto, agora dispondo de arsenais mais
contundentes de propagação e, por outro lado, vitimadas por poderes
comunicacionais dos quais desconhece a face e o interesse. O salvacionismo
moral sugerido por alguns em meio a uma crise de valores republicanos e à
degradação econômica encontrou fácil disseminação. Como se diz em português:
"para quem está com o martelo na mão, tudo é prego..."
DW: Como explicar casos de "cidadãos de bem" sendo
atores de ações de censura, de extrema intolerância e violência, verbal e
física, contra outros cidadãos, igualmente "de bem"?
MSC: O "cidadão de bem", entendido como aquele que
não faz o que faz por maldade, é a encarnação do que Bertolt Brecht chamava de
"analfabeto político". Isto é, alguém que, portador de boas
intenções, age em consonância desconhecida com as más intenções de quem almeja
uma situação disruptiva e oportunista.
DW: Quem se beneficia dessa explosão de ódio?
MSC: Todos os "liberticidas" e todos os
"democracidas" são herdeiros dessa seara incendiadora que exclui o
conflito (divergência de ideias ou posturas) e alimenta o confronto (busca de
anulação do divergente).
DW: Aonde essa cultura do ódio e intolerância no país pode
nos conduzir? Tempos sombrios estão por vir?
MSC: Tempos sombrios podem vir, sempre. Contudo, podem ser
evitados se houver uma aliança autêntica em meio às diferenças entre aqueles e
aquelas que recusam a brutalidade simbólica e física como instrumento de
convivência. Não há um caminho único para o futuro. Não há a impossibilidade de
esse caminho parecer único. Não há inevitabilidade de que um caminho único
venha.
DW: "Até nos tempos mais sombrios temos o direito de
ver alguma luz", disse a filósofa alemã Hanna Arendt. Qual seria a luz
para começar a responder a essa cultura do ódio?
MSC: A luz mais forte é a da resistência organizada e
persistente de quem deseja escapar das trevas e não quer fazê-lo sozinha, nem
excluir pessoas e muito menos admitir que impere o malévolo princípio de
"cada um por si e Deus por todos". Seria praticando cotidianamente o
"um por todos e todos por um". Afinal, como dizia Mahatma Ghandi,
"olho por olho, uma hora acabamos todos cegos".
Texto e imagem reproduzidos do site: cartacapital.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário