Posso ser contra a cura gay, o ensino religioso e a proibição de obras de arte
sem passar por cima do direito de outras pessoas. Marko Djurica/Reuters.
Publicado originalmente no site Huffpostbrasil, em 29/09/2017.
Brasil, um país desacostumado à liberdade
É ilusão achar que um Estado autoritário passando leis que
proíbam ideais conservadores seja uma vitória da liberdade.
Guilherme Spadini (Psiquiatra e psicoterapeuta formado pela
USP).
Uma série de eventos recentes no Brasil me fez pensar sobre
o quanto é difícil viver em uma sociedade livre.
Liberdade é um conceito delicado. Neste caso, estou falando
da liberdade do indivíduo que vive em sociedade, que é sempre limitada pela
liberdade de seus concidadãos, e sempre ameaçada pelos delírios autoritários do
Estado.
Vou me debruçar aqui sobre três eventos mais emblemáticos: a
decisão judicial sobre a tal "cura gay", o cancelamento da exposição
Queer Museu e a recente decisão do STF de não proibir o ensino religioso
confessional.
Queer Museu
O episódio da exposição se diferencia dos outros por não se
relacionar com decisões oficiais do Estado. Simplesmente, o banco Santander,
que patrocinava a exposição, decidiu fechá-la após pressão popular. Neste caso,
a gritaria sobre censura é obviamente descabida, já que não houve nenhuma
proibição do Estado.
Não deixa de ser triste constatar, no entanto, a facilidade
com que parcelas da sociedade conseguem se organizar para proibir, fechar,
impedir, a livre expressão de ideias.
Há outras considerações relevantes sobre o episódio, como o
incentivo por meio do dinheiro público e classificação etária da exposição, que
poderiam ter sido revistas sem, no entanto, que a mesma fosse fechada.
Independentemente, a verdade é que a polarização política fez a liberdade de
vítima mais uma vez.
Em uma sociedade livre de verdade, uma exposição de arte
poderia ser alvo de repúdio, até de boicote, mas jamais faria sentido a
necessidade de proibi-la.
Paralelo a esse episódio, aconteceu também a proibição da
peça em que Jesus era uma mulher trans, que voltou a ser autorizada depois.
Sinais do quanto ainda somos uma sociedade imatura, desacostumada à liberdade.
Cura gay
Depois da exposição, veio a grande polêmica da "cura
gay". Que teve muito pouco a ver com "cura gay", exceto nas
manchetes sensacionalistas. E aqui temos um exemplo claro dos limites do poder
do Estado sobre o indivíduo.
A decisão judicial avaliava a interpretação de uma resolução
do Conselho Federal de Psicologia (CFP). O teor da decisão é de que a resolução
do CFP não pode ser contrária à Constituição e, portanto, não pode limitar a
liberdade científica e de pensamento e expressão, que são garantias
constitucionais.
Portanto, a decisão manteve o texto da resolução em tudo o
que dizia respeito a não permitir o entendimento da homosexualidade como
doença, de não permitir a divulgação de curas, de não permitir o tratamento
involuntário de ninguém. Mas tomou o cuidado de observar que o texto da
resolução não poderia ser interpretado de modo a proibir que pessoas,
livremente, no contexto particular, discutam a possibilidade de
"reorientação sexual" com seus psicólogos.
E também que o texto não pode ser interpretado de modo a
impedir que psicólogos realizem pesquisa sobre o tema. Mas esse segundo ponto
não causou furor. Voltemos ao primeiro.
A ideia de "reorientação sexual" é absurda do
ponto de vista científico. Mas também o são práticas como homeopatia, florais
de Bach, Reiki etc (as duas últimas largamente utilizadas por psicólogos sem
proibição pelo CFP, a primeira oficialmente reconhecida pelo CFM e mantida no
SUS com o dinheiro do contribuinte). Como também foi absurda a decisão judicial
que obrigou universidades a fornecer remédio sem comprovação de eficácia para
pacientes com câncer.
Entre decisões judiciais que proíbam tratamentos sem
eficácia ou que os obriguem, ficamos entre a cruz e a espada. As últimas são
patentemente absurdas, mas já aconteceram (como no caso da fosfoetanolamina).
As primeiras podem parecer sensatas, mas representariam um
forçar de valores científicos goela abaixo da sociedade, proibindo que
indivíduos procurem formas alternativas de tratamento, como imposição de mãos,
cromoterapia, cirurgias espirituais etc. Ou seja, proibindo que as pessoas
exerçam suas liberdades de pensamento, ideologia, fé, espiritualidade, que
seja.
A decisão que indignou tanta gente não fez nem uma coisa nem
outra. Não proibiu nem obrigou ninguém a nada. Apenas ressaltou que o texto de
uma resolução de conselho profissional não pode atropelar a Constituição e,
portanto, não pode impedir as pessoas de buscarem ajuda dentro de seus
preceitos religiosos e ideológicos.
Esse foi um dos assuntos que mais mexeu comigo, entre os que
estou examinando. Eu tive tanta vontade de me juntar a todos os meus amigos
indignados. Porque eu acho que a ideia de oferecer psicoterapia para alguém que
quer deixar de ser gay é odiosa. Traduz um pensamento retrógrado,
preconceituoso, repressivo.
Sinto o mesmo asco que tantos dos meus amigos, LGBTs ou não,
que compartilham, direta ou empaticamente, da luta dessa comunidade, da dor de
quem tem de enfrentar preconceitos diariamente, de quem tem direitos civis
limitados, de quem tem medo de abraçar seu companheiro na rua. Eu queria muito
me juntar ao coro dos revoltados.
Mas eu simplesmente não consigo deixar de concordar com a
decisão judicial. Porque milhões de pessoas no Brasil pensam diferente. E o
Estado tem limitados poderes para privar essas pessoas de pensarem diferente e
de procurarem ajuda profissional que acolha seu jeito diferente de pensar. E
deveria ter mesmo.
A decisão judicial não revogou a resolução do Conselho.
Confirmou-a. Mas tomou o cuidado de observar que ela não pode ser interpretada
de modo a limitar direitos constitucionais. Um exemplo sutil de cuidado com a
liberdade, com os limites do poder o Estado sobre o indivíduo, que foi muito
mal interpretado por nossa sociedade, tão desacostumada.
Ensino religioso
Por fim, a decisão do STF de que não pode proibir que o
ensino religioso nas escolas públicas, previsto na Constituição, seja do tipo
confessional.
Depois do exposto sobre a decisão da "cura gay",
fica mais fácil inferir os argumentos que vou usar aqui. Eu sou totalmente contra
o ensino religioso nas escolas públicas. Mas isso não estava em pauta. A
disciplina é prevista pela Constituição e, portanto, o STF não ia mudar isso.
Só o que o STF fez foi decidir que, onde não há previsão legal para que algo
seja proibido, esse algo não deve ser proibido.
Fosse o ensino religioso obrigatório, provavelmente a
decisão seria diferente. Mas não é. A Constituição obriga que a disciplina seja
oferecida nas escolas, no ensino fundamental, mas como uma optativa. Os pais
podem não matricular seus filhos nessa disciplina.
Por todo o Brasil, as localidades podem optar por como fazer
esse ensino religioso. Ele pode ser do tipo confessional, ou do não
confessional. O tipo confessional é aquele em que um professor que é religioso,
tem alguma denominação religiosa pessoal, possa ensinar sua religião, seus
dogmas, suas crenças. O tipo não confessional é aquele em que um professor, a
princípio, não ligado a alguma religião específica, ensina o pensamento
religioso de forma isenta, variada, mais técnica que propriamente vivencial.
Agora vejamos. O STF não decidiu que o ensino religioso será
obrigatório. Isso já está na Constituição e só o oferecimento é obrigatório. A
disciplina é opcional. O STF não proibiu o ensino não confessional. Ele
continua podendo ser adotado pelas escolas interessadas. O STF não tornou o
ensino confessional obrigatório. Ele apenas não o proibiu.
Então, qual o grande escândalo? Nenhum. Só mais evidências
de um país desacostumado à liberdade.
Tudo isso parece um retrocesso para o movimento
progressista. Mas só porque este movimento está ficando por demais acostumado a
depender de leis, de regulamentações, de transformar conquistas em
"direitos" bancados pela máquina do Estado. Um movimento que deveria
ser a favor da liberdade, da emancipação humana, vem se tornando autoritário.
Só quer reconhecer como livres os pensamentos que lhe agradam, como livres as
pessoas que o seguem.
Isso não é liberdade. É conformidade.
É ilusão achar que um Estado autoritário passando leis que
proíbam ideais conservadores seja uma vitória da liberdade. Liberdade, mesmo, é
conviver com a diversidade de opiniões, lutar ardentemente pelo avanço das
suas, mas sempre desconfiar da imposição do Estado.
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*Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas
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Texto e imagem reproduzidos do site: huffpostbrasil.com
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