A última entrevista de Vinicius de Moraes
Por Carlos Willian Leite
O poeta e compositor morreu alguns meses depois de ter
concedido a entrevista ao jornalista Narceu de Almeida Filho, em 1979
Quando o jornalista Narceu de Almeida Filho bateu este longo
papo com Vinicius de Moraes, em sua casa, bem situada numa tranquila rua da
Gávea, no Rio de Janeiro, não poderia imaginar que, no momento da edição da
entrevista, o Poetinha já não existisse mais. Vinicius estava todo animado,
layout novo, de cabelos cortados, barba raspada, vestido elegantemente e sem o
seu famoso boné que o acompanhou durante muitos anos. Havia emagrecido vários
quilos e abandonado temporariamente as excursões musicais para dedicar-se,
novamente, à poesia. Poeta do amor, Vinicius estava ainda em lua-de-mel com sua
mulher, Gilda, a quem conheceu na Europa, onde ela estudava. Entre pilhas de
livros, discos, um violão, dois conjuntos de som e objetos de arte, ele falava
de seu objetivo maior no momento — “fazer feliz essa moça” — e olhava,
apaixonadamente, para a mulher sentada ao seu lado. A entrevista foi publicada
no livro “As Entrevistas de Ele Ela”, editora Bloch.
Vinicius, você andou meio desaparecido, ultimamente,
viajando muito. Como você está agora?
Vinicius de Moraes — Eu estou bem, de um modo geral. Tenho
uns problemas de dieta, para regularizar o metabolismo do meu açúcar, que é um
pouco alto. Agora vou tirar umas férias e passar um mês em Punta del Este, dar
uma descansada e terminar meus livros de poesia, que estão parados há quatro
anos por causa desse negócio de shows. Foram quatro anos de pauleira o tempo
todo, muita viagem, principalmente no Brasil e na Argentina, mas também na
Europa. No ano retrasado estivemos na Itália e de novo no Olympia, em Paris.
Agora fizemos mais ou menos o mesmo roteiro e incluímos Londres, onde eu não
havia trabalhado ainda. Para mim foi uma surpresa muito boa, porque o show teve
bastante sucesso. Do ponto de vista profissional, o ano foi ótimo, ainda que
tenha me deixado um pouco de língua de fora… Mas tudo bem.
E agora você entra em férias para trabalhar?
Vinicius de Moraes — É, férias para ver se escrevo um pouco.
Esses livros estão realmente muito atrasados.
Quais os livros?
Vinícius de Moraes — São dois livros. Um deles é o que venho
escrevendo sobre o Rio de Janeiro. Há uns 25 anos que trabalho nesse livro. O
outro são os poemas escritos de 1960 para cá, porque nesse tempo todo eu não
publiquei nada de poesia, a não ser algumas edições especiais que fiz na Bahia,
na editora do Calazans Neto. Uma delas é a “História Natural de Pablo Neruda”,
que fiz quando ele morreu. Agora vou reunir esses poemas escritos a partir de
1960 e completar o livro, que tem um título meio contabilístico — “O Dever e o
Haver”. É uma prestação geral de contas, do que foi feito, do que deixou de ser
feito.
Esses dois livros que você vai publicar serão, em termos de
poesia, a sua palavra final?
Vinicius de Moraes — Eu considero esses dois livros uma
espécie de limpeza geral da casa, sabe. Depois disso, se ainda tiver alguma
coisa a dizer, terá de ser uma coisa realmente nova. Do contrário, eu paro de
escrever. Para mim não é mais fundamental escrever. O que foi dito foi dito, e
é, digamos, o meu recado de poeta. Não sei se terei algo de importante a dizer.
E, se não tiver, prefiro não dizer. Escrever por escrever, simplesmente, é uma
coisa que não farei em hipótese alguma.
Você tem algum método de trabalho permanente, periódico, ou
escreve somente quando baixa a inspiração?
Vinicius de Moraes — É, eu escrevo somente quando a coisa
vem. Teve uma época da mocidade, até aí pelos 30 anos, em que eu escrevia
muito, tinha necessidade, aquela compulsão de pegar o papel e sentar para
escrever. Até os 40 anos foi mais ou menos assim. Depois começou a escassear, a
rarear. E veio o período de música popular, que foi muito importante para mim.
Você ficou famoso como poeta muito cedo, antes dos 20 anos,
não foi?
Vinicius de Moraes — Muito cedo. Meu primeiro livro, “O
Caminho Para a Distância”, teve uma ótima crítica. Eu tinha 19 anos quando o
publiquei. Com 22 anos ganhei o Prêmio Nacional de Poesia — chamava-se Felipe
de Oliveira e premiava todas as artes literárias. Ganhei uma disputa com o
Jorge Amado, e por um focinho apenas de frente.
O fato de ter ficado famoso muito cedo foi bom ou ruim para
você?
Vinicius de Moraes — Para mim não foi muito legal, não,
sabe. Me deu uma certa soberba, eu achava que era um poeta genial, essas
coisas. Mas depois, uns dois ou três críticos me puseram no meu lugar,
direitinho. Um deles foi o João Ribeiro, com relação a esse primeiro livro. Ele
fez uma crítica muito boa, mas também muito severa, como quem diz: “Olha,
menino, trabalhe mais com o verso livre, os seus sonetos não são muito bons”.
Outro foi o Manuel Bandeira, que fez uma crítica bastante severa. Finalmente,
quando ganhei o Felipe de Oliveira, o Otávio Tarquínio de Sousa escreveu também
um rodapé muito bom, me colocando em minha devida posição. O Mário de Andrade,
igualmente, me deu umas podadas muito bem dadas. Isso tudo me ajudou muito.
Na época você recebeu bem essas críticas?
Vinicius de Moraes — Não recebi muito bem, não. Recebi mal,
sabe. Porque, além do mais, havia todo o grupo do Otávio de Farias que me
incensava. Para eles, era assim como se eu fosse o poeta que todo mundo
esperava. Era o grupo da faculdade de Direito. Essas coisas me subiram um pouco
à cabeça. Mas com aquelas críticas, a própria vida, a experiência com o
conhecimento maior dessas pessoas, aí eu comecei a me situar. Processou-se
também uma evolução política muito grande. Eu tinha sido formado para ser um
intelectual de direita. Mas em 1942 aconteceu uma coisa muito importante em
minha vida, que foi a vinda ao Brasil do escritor americano Waldo Frank. O José
Olympio ofereceu um coquetel a ele e todos os escritores compareceram.
Começamos a conversar e, lá pelas tantas, ele me confessou que achava coquetel
de intelectuais uma coisa chatíssima e perguntou se não podíamos sair por aí.
Saímos, era dia de São Jorge e eu levei o Waldo para ver as putas do Mangue.
Havia um delírio lá, ele ficou impressionadíssimo. Aliás, a origem da minha
“Balada do Mangue” foi esse dia. Depois eu o levei à favela do Pinto, aquela
que havia no Leblon. Hoje eu não faria mais uma coisa dessas, não há condições.
Mas foi tudo bem, ficamos lá numa tendinha, pagamos umas cervejas para os
crioulos e eles tocaram para nós. Ele achou tudo ótimo, queria mesmo era ver
esses ambientes e fugir das cerimônias oficiais. Daqui ele foi para a Argentina,
acabou se envolvendo em política lá — era um socialista, mas com uma grande
dose de filosofia hindu, bastante maluco. Era um judeu, muito amigo do
Hemingway e do Chaplin. Na Argentina, um grupo de fascistas aplicou-lhe uma
tremenda surra e ele ficou três meses no hospital. Depois, voltou ao Brasil e
pediu ao Oswaldo Aranha, o chanceler da época, que eu fosse indicado para
acompanhá-lo na viagem que faria pelo interior do país. Eu ainda não era do
Itamaraty, mas o Aranha sabia que eu ia fazer o concurso para ingressar na
carreira diplomática e me designou para ciceronear o Waldo. Para mim, a viagem
foi maravilhosa, escutei histórias fantásticas dele, inclusive a de quando foi
martirizado pela Ku Klux Klan. Foi a primeira vez que andei armado em minha
vida, porque chegou a notícia de que uns tiras argentinos tinham vindo matá-lo
no Brasil.
Até essa época você era bastante católico e místico, não?
Vinicius de Moraes — Não era tão católico, não, mas era um
cara muito mistificado, não só pela formação, mas também pelo grupo que
orientava, sobretudo o Otávio de Faria. Eram todos caras de direita, muitos
haviam aderido ao integralismo. Não sei como consegui me safar disso. Acho que
foi meu lado de moleque de praia que reagiu na hora certa. Mas essa viagem com
o Waldo Frank representou para mim, em um mês, uma virada. Saí um homem de
direita e voltei um homem de esquerda. Foi o fato de ter visto a realidade
brasileira, principalmente o Nordeste e o Norte, aquela miséria espantosa, os
mocambos do Recife, as casas de habitação coletiva na Bahia, o sertão
pernambucano, Manaus. A barra me pesou mesmo.
Essa virada se manifestou em sua obra?
Vinicius de Moraes — Logo em seguida, porque aí eu já tivera
também a experiência inglesa. No Brasil, pouca gente havia tido essa
experiência com exceção de Gilberto Freyre, que também estudou em Oxford. Para
mim, a leitura dos poetas ingleses foi muito importante, especialmente no
sentido de certa simplificação e desmistificação e todo aquele arcabouço
aristocrático, metafísico. Veio tudo por água abaixo.
E quando você começou a fazer música?
Vinicius de Moraes — A música começou mesmo na década de
1950, quando voltei de meu primeiro posto diplomático no exterior, em Los
Angeles. Agora, eu sempre fazia minhas músicas, antes, mesmo sozinho, mas sem
nenhum intuito de editar ou ver cantar. Aos 15 anos tive uma experiência
interessante: eu me liguei a uma dupla vocal que havia aqui, chamada Irmãos
Tapajós, e comecei a compor com eles. Fizemos várias músicas, das quais duas
tiveram muito sucesso. Uma era um foxtrote brasileiro, chamado “Loura ou
morena” (que foi regravado há uns 10 anos), e a outra era uma “berceuse”,
“Canção da amante”. Foi o primeiro dinheiro que ganhei em minha vida, produzido
por essas músicas.
Quando você foi exonerado do Itamarati, em 1968, houve
alguma alegação específica?
Vinicius de Moraes — O Otto (Lara Resende) sabe de uma
história muito engraçada que aconteceu: quando o decreto veio de Brasília,
assinado pelo presidente Costa e Silva, o despacho dizia: “Ponha-se esse
vagabundo para trabalhar”. Aí, dizem que o Magalhães Pinto botou a mão na
cabeça e chamou o Otto imediatamente, comentando: “Ih, isso vai dar um barulho
dos diabos. Escreve um arrazoado aí para mandarmos para Brasília”. O Otto
escreveu e, por isso, o despacho não se tornou público. Mas a exoneração veio
de qualquer maneira. O que para mim foi ótimo, porque eu já não aguentava mais
aquilo, mas tinha um problema moral devido aos filhos, pois com 24 anos de
carreira eu estava mais ou menos próximo da aposentadoria. Tinha certo medo de
jogar aquilo tudo pra o alto. Mas quando me livraram desse problema moral,
fiquei muito satisfeito.
Voltando à música: você teve parcerias históricas. Por que
lá pelas tantas, a parceria acaba?
Vinicius de Moraes — É como um casamento, sabe. É parecido.
Acho que há um desgaste. Além disso, no tempo da bossa-nova, por exemplo, havia
milhares de compositores fazendo música, e apenas uns poucos letristas. De
maneira que eu não chegava para as encomendas: era o Tom, o Baden Powell, o
Carlinhos Lyra. Depois, na geração 1963, pintaram o Edu Lobo, o Francis Hime.
Tanto assim que eu sou um dos pouquíssimos compositores brasileiros que
atravessou essas gerações todas. Eu fiz música com o Pixinguinha, o Ary
Barroso, com o pessoal da geração do Antônio Maria, o Paulinho Soledade; depois
peguei o Tom, o Baden, o Carlos Lyra, o Edu, o Francis e, em 1969, o Toquinho.
E mesmo com caras mais jovens que o Toquinho eu já fiz música, como o Eduardo
Souto Neto, o João Bosco.
Com quais parceiros você acha que houve mais criatividade?
Vinicius de Moraes — Com o Tom, sobretudo, mas também como o
Carlinhos Lyra e o Baden. O Baden tem uma produção muito boa, e foi ele quem me
introduziu o elemento africano, o que não havia antes na bossa-nova — eram
todos brancos, arianos.
O que você acha das críticas que o Tinhorão faz à
bossa-nova?
Vinicius de Moraes — Aquilo é burrice total do Tinhorão. É o
negócio dos guarda-costas do samba. Como existe também, aliás nos Estados
Unidos, com relação ao jazz. Lá tem cara que acha que a música só é jazz se for
tocada com aquelas cornetas dos confederados. Se não for, não é puro. E tem que
ter também a tábua de lavar roupas (washboard) verdadeiras, para marcar o
ritmo. É muito sectarismo. Embora seja um excelente pesquisador, o Tinhorão tem
esse lado insuportável.
Você acha que a influência do jazz foi boa para a
bossa-nova?
Vinicius de Moraes — Acho que foi uma influência muito boa.
No samba tradicional, os instrumentistas não improvisavam, em geral as
harmonias eram rígidas, as formações eram standard. Com a influência do jazz,
abriu tudo isso, você podia introduzir qualquer instrumento num conjunto de samba,
os instrumentistas improvisavam, as harmonias melhoraram muito e se
enriqueceram, os instrumentistas tornaram-se excelentes e conheciam
profundamente seus instrumentos, como é o caso de Baden e Tom. A influência foi
benéfica porque houve uma descaracterização de nossa música. O samba estava
sempre presente na bossa-nova. Além disso, a bossa-nova trouxe mais alegria e
bom humor à nossa música, que andava muito voltada para a tristeza, a dor de
corno, a fossa, naquela época do Antônio Maria. Com a bossa-nova a coisa ficou
mais sadia, mais otimista, os sentimentos eram mais de comunicação, mais
legais.
Depois da bossa-nova, o que houve de mais importante na
música popular brasileira, em sua opinião?
Vinicius de Moraes — Da chamada geração de 1963, tivemos dois
nomes importantes, que são o Francis Hime e o Edu Lobo, o primeiro mais urbano,
o segundo pesquisando coisas de Pernambuco. Depois veio o Milton Nascimento,
pesquisando a toada mineira. O que se perdeu foi aquela organicidade que havia
no movimento da bossa-nova.
E os baianos, Caetano e Gil?
Vinicius de Moraes — Os baianos já são outro esquema, um
negócio mais próximo da geração dos Beatles. Eles quiseram misturar esse troço
todo, fizeram o tropicalismo, rock e samba. Acho que os dois são compositores muito
bons. Talvez eu goste mais das coisas iniciais deles, embora ache que até hoje
continuam a fazer bons trabalhos.
E o Chico Buarque?
Vinicius de Moraes — O Chico eu acho fora de série,
realmente. Esse tem aquela estrela, um talento que não pode ter mais tamanho. E
o Chico é bom de letra, é bom de música, sabe cantar. Tem tudo, o cara. São uns
poucos casos isolados que existem na música brasileira — um Noel, um Caymmi, um
Chico, que se distinguem muito.
O que você acha desse debate que tem havido atualmente nos
meios artísticos brasileiros, com a cobrança de definições políticas por parte
de artistas pelas chamadas patrulhas ideológicas?
Vinicius de Moraes — São pequenas desavenças ideológicas
para as quais eu não dou a menor importância. Acho uma burrice o artista ser
engajado politicamente e fazer uma música ruim — isso não tem o menor valor. O
que adianta você ser o maior comuna e fazer sambas ruins? Aí eu acho que seria
preferível ser alienado e fazer música boa. Acho que o engajamento político o
cara só deve ter quando aquilo é tão importante para ele que passa a ser sua
própria razão de existir, ele não pode viver fora daquilo. É um compromisso que
assume consigo mesmo e com a sociedade, e ponto. Eu tenho um envolvimento
político bastante grande, mas nunca o expressei em minha poesia, exceto quando
surgiu como uma coisa válida, como em “Operário em construção”, “Os barões da
terra” e “Mensagem à poesia”. Mas são bons poemas. Eu fiz também muita coisa
política que era uma merda e joguei fora.
Como foi seu encontro com Deus e depois seu desencontro, seu
desencanto?
Vinicius de Moraes — Bom, o encontro foi normal: família
católica, colégio de padres, aquele negócio de confessar aos domingos, de
comungar. Mas acho que a vocação para o pecado era maior. As confissões eram
sempre as mesmas: “Bati três esta semana, bati quatro”. Os castigos também eram
os mesmos, de modo que aquilo acabou me cansando, me aporrinhando. Mas eu me
meti a católico porque toda aquela fase de direita era muito ligada ao problema
de Deus, principalmente por causa da influência do Otávio de Faria. Ele era
aquele cristão dramático, lia muito Pascal, Claudel, os filósofos sofredores,
me deu os primeiros livros para ler. Até hoje eu tenho uma grande admiração e
estima por ele, embora as divergências ocorridas fossem graves demais para
permitir que mantivéssemos um relacionamento estável. Mas gosto muito dele,
quero um grande bem a ele. Depois a vida foi em frente, me liguei muito ao
Bandeira, Drummond, Pedro Nava e outros, que tinham uma consciência cristã,
mas não levavam aquilo como um cartaz na testa. Alguns eram francamente
agnósticos. De toda essa mistura nasceu um desencanto, um desinteresse que
acabou sendo total. Eu não acreditava mais.
Hoje você não tem mais qualquer preocupação com o problema
de Deus ou de religião?
Vinicius de Moraes — Num plano assim de vida, não. Restou
talvez certa religiosidade, própria de meu temperamento. Por exemplo, eu me
interesso por candomblé, certas superstições. Isso é sinal de que tem algum
fogo na cinza. Mas aqui, na cuca, não tenho mais grandes indagações. Ao mesmo
tempo, me recuso a elas um pouco. Não me interesso mais por coisas que não sei
explicar.
Você andou muito metido com candomblé na Bahia. Você
acredita mesmo nisso?
Vinicius de Moraes — Eu prefiro acreditar do que não
acreditar, mas realmente não acredito. Quando penso de modo puramente cerebral,
não acredito. Deixei também de fazer aquele gênero de indagações, olhar para o
céu e perguntar: “Onde está Deus? Afinal alguém fez esta merda toda, não foi?”
Mas jamais vou ter respostas a essas perguntas, a não ser talvez depois da
morte. Mas também não sei o que há do outro lado, de modo que não penso mais
nessas coisas. Além disso, à medida que fui perdendo a religiosidade e o
misticismo, o ser humano cresceu muito em mim, tomou conta de tudo. O que me
interessa hoje é gente.
E a morte?
Vinicius de Moraes — Bem, a morte sempre me preocupou, e
ainda me preocupa. Mas hoje, de uma maneira muito mais simples, como uma
espécie de saudade da vida, uma pena de deixar isso aqui com todas as cagadas e
confusões, porque sempre vivi dentro de uma grande plenitude. Sobretudo por
causa das mulheres: tenho muita pena de deixá-las. Sei que a velhice pode ser
uma coisa legal, mas não gosto da ideia de envelhecer porque perderia tudo o
que as mulheres ainda podem me dar.
Você nunca conseguiu, ou quis, viver sozinho, não?
Vinicius de Moraes — Não. Eu aceito a solidão bem, mas não
por muito tempo. Realmente, para mim, a mulher é um ser indispensável. Não
posso viver sem mulher. Houve uma época de minha vida que achei que esse
negócio havia terminado, que as coisas não estavam dando certo, que talvez
fosse melhor eu me isolar e parar de brincar com esse bicho tão perigoso. Mas
não deu. Não deu mesmo. Eu sou um namorador inveterado.
Você vê muita diferença entre o Vinicius dos 18 anos e o
Vinicius de hoje?
Vinicius de Moraes — Não vejo muita diferença entre os meus
sonhos de ontem e de hoje, entre certa parte lúdica que sempre tive, sempre em
fermentação. Acho que hoje eu sonho mais do que sonhava antigamente. Quer
dizer, a viagem é permanente, não é uma coisa de um dia ou um momento, com
paradas e fases de descrença. Não sou de ter fases de descrença.
Você está satisfeito consigo mesmo?
Vinicius de Moraes — Bem, eu gostaria de mudar algumas
coisas de mim, mas de um modo geral não sou um sujeito de jogar fora. Tenho uma
estima por mim bastante grande, sabe. Uma estima que vem da constatação das
coisas que fiz, das pessoas que eu amei, dos amigos que tive e tenho. Considero
tudo conquistas consideráveis, no cômputo geral. Às vezes tenho a imodéstia de
dizer a mim mesmo: “Você vale a pena”. Isso sem nenhum sentimento de vaidade.
Não tenho qualquer preocupação com a glória literária. Se tivesse essa
preocupação, eu trataria muito melhor das minhas coisas. A publicação de
antologia dos meus poemas pela Aguilar (editora) foi um dos partos mais
difíceis e demorados que já houve, tudo por despreocupação minha. Hoje em dia
tenho uma preguiça enorme de trabalhar, escrever.
Você se tornou mais exigente?
Vinicius de Moraes — Muitíssimo mais exigente. Hoje eu leio
muito pouco, porque a maioria das coisas publicadas me parece ruim. Atualmente,
quando encontro um escritor que me interessa, para mim é uma festa. Mas, em
geral, mal consigo passar das primeiras quatro ou cinco páginas.
Qual era a visão que você tinha do Brasil quando começou a
fazer poesia?
Vinicius de Moraes — Eu achava o Brasil um país ideal,
realmente, e essa visão durou até lá pelos meus 40 anos. O primeiro choque que
o Brasil me provocou foi quando voltei dos Estados Unidos, em 1951, e vi
aqueles bares americanos que começavam a proliferar, o bar vermelhinho
desaparecendo, as pessoas comendo em pé nas lanchonetes, a penetração do estilo
de vida americano.
E hoje, como você vê o Brasil?
Vinicius de Moraes — Eu digo sempre uma coisa: tenho uma
grande fé no Brasil. Uma fé meio estúpida, meio instintiva, por causa do povo.
Realmente, a minha fé no Brasil não vem das instituições, nada disso. Pelo
contrário, acho que elas têm sido extremamente negativas para o país. Agora, eu
acredito neste povo. E cada vez que eu volto ao Brasil, de alguma viagem ao
exterior, essa crença aumenta, compreende. E como essa crença é um bem
gratuito, eu prefiro tê-la a não tê-la.
Que tipo de sociedade você gostaria que houvesse no Brasil?
Vinicius de Moraes — Acho que uma volta a uma democracia
relativa já seria muito bom! O povo ter liberdade — isso me parece fundamental.
Quer dizer, ver as pessoas felizes, contentes, com as caras alegres, sem
angústia. E, sobretudo, haver a realização, ou pelo menos um arremedo de
realização, de uma organização social mais justa, com uma melhor distribuição
da riqueza, uma reforma agrária legal. Isso eu gostaria de ver: os problemas
sociais mais graves resolvidos ou, no mínimo, colocados num bom caminho. Isso
já me daria um pouco de paz, de calma, de uma tranquilidade bastante maior do
que aquela que eu tenho hoje. Eu não consigo me destacar do problema humano.
Já falamos de seus casamentos com parceiros musicais. E com
os seus casamentos de verdade, quantos foram?
Vinicius de Moraes — Estou agora no meu nono casamento.
Há quanto tempo?
Vinicius de Moraes — Há três meses. A Gilda vivia na Europa,
era estudante lá. É uma moça ótima, maravilhosa. Eu tinha saído de um casamento
também muito bom, muito feliz, com aquela moça argentina, a Martinha. Mas ela
estudava na Argentina, o que nos obrigava a viver numa verdadeira ponte aérea.
Não deu para continuar.
Você diria que suas mulheres influenciaram sua obra?
Vinicius de Moraes — Bom, todas foram premiadas, né. Todas
ganharam poemas, canções, uma coisa ou outra.
Houve alguma que tivesse exercido uma influência maior sobre
o nível de seu trabalho?
Vinicius de Moraes — Nesse sentido, acho que a influência
maior foi a Tati, minha primeira mulher. Quando me casei com ela, eu estava
começando a me desgrudar de minhas influências direitistas. Havia ainda muita
confusão mental em mim, muita influência da minha formação, muito colégio. E a
Tati já era uma pessoa bastante progressista. Mas, no começo, ainda quebrávamos
um pau firme em discussões políticas. Depois, o relacionamento melhorou em todos
os sentidos, inclusive no político, porque houve também aquela minha viagem
pelo Brasil.
Seu casamento mais longo durou quanto tempo?
Vinicius de Moraes — Onze anos. Foi exatamente esse, o
primeiro, com a Tati.
E o mais curto?
Vinicius de Moraes — O mais curto durou um ano.
Você mantém boas relações de amizade com as ex-mulheres, ou
é do gênero que rompe relações?
Vinicius de Moraes — Com a maioria, mantenho boas relações;
mas não com todas. O relacionamento foi pior com as que engrossaram durante a
separação, especialmente com duas que engrossaram mesmo, para valer.
Com sua experiência, o que acha mais fácil: conquistar e
casar-se com uma mulher, ou separar dela?
Vinicius de Moraes — O difícil é separar. Casar é facílimo.
Separar é sempre uma experiência dolorosa, porque são duas pessoas que vivem
juntas, amam juntas, têm aquele contato diário. Isso tudo forma uma espécie de
hábito, uma coisa que não é mecânica — quando existe amor, é claro. E, se há
amor, é sempre muito dolorosa a separação.
Como foi sua iniciação sexual? Poética, traumática, normal?
Vinicius de Moraes — Foi o normal de menino da minha idade,
de seus 13 anos. Foi na rua Rio de Janeiro, em Belo Horizonte. Tudo
providenciado por um tio meu. Foi com uma putinha, né, uma menina de 14 anos ou
15.
E correspondeu às suas expectativas?
Vinicius de Moraes — Ah, correspondeu plenamente. Foi uma
experiência muito boa. Depois o filho da puta inventou que eu tinha deixado a
menina grávida. Eu tinha aquela ingenuidade de garoto e acreditei piamente;
fiquei apavorado. Ele era um homem de muito mais idade, andava com um grupo de
boêmios, era um seresteiro. E me dizia que eu ia ser obrigado a me casar.
E como foi aquela história de um amor fulminante que nasceu
numa sala de museu, entre você e uma jovem loura que se viam pela primeira vez?
Vinicius de Moraes — Era uma exposição de Portinari. A
menina era muito interessante, uma graça. Eu dava uma olhada num Portinari e
outra nela. E ela também. Eu sei que viemos de lados opostos e, quando a gente
se encontrou, foi até um troço emocionante. Eu falei assim: “Eu te amo sabe?”
Ela começou a chorar. Aí, pronto. Ela estava noiva, mas acabamos tendo um
romance que durou um ano mais ou menos.
Quais os principais planos para o futuro?
Vinicius de Moraes — Meu plano principal, no memento, é
fazer essa moça feliz, a Gilda. Quero aprimorar esse relacionamento conjugal
até ele se tornar uma coisa muito sólida. Para mim, seria um terrível desgaste
ter de me separar novamente e procurar outra mulher. Inclusive estou chegando a
uma idade em que isso fica cada vez mais difícil. Então, gostaria que a Gilda
fosse realmente a última. E quando falo última, falo: “Que ela fosse a
primeira”. A Gilda tem as qualidades para isso. Naturalmente, vai chegar um dia
em que teremos de nos separar por problemas de idade. Mas quanto a esse
problema, não posso fazer nada. É um problema da vida, sou mito mais velho que
ela, uma moça bastante jovem. Mas como sou um sujeito muito dialético, procuro
resolver os problemas na hora. Não penso muito neles antes que pintem.
Além desse plano principal, você tem outros?
Vinicius de Moraes — Bem, estou um pouco saturado de shows,
excursões, música. Vou terminar esses dois livros de poesia e procurar viver
minha vida dentro de uma felicidade possível. Se você me perguntar se sou um
homem feliz, eu vou dizer que não sou. Não sou porque não sei ser feliz dentro
de uma sociedade tão injusta como a nossa. Esse é um problema que me afeta
diretamente, me afeta não só como homem de esquerda, mas também como homem,
simplesmente, como um ser humano. Então, esse ônus eu vou carregar pelo resto
de minha vida, não há saída, porque não tenho a menor esperança de ver as
coisas se normalizarem e se equilibrarem ainda no meu tempo.
Texto e imagem reproduzidos do site: revistabula.com/369
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