terça-feira, 21 de maio de 2019

Onde as meninas são bonitas e malvadas


ONDE AS MENINAS SÃO BONITAS E MALVADAS

Publicado originalmente no site da revista STATUS, em 05/05/2011 

Nossa reportagem passou uma noite no KitKatClub, a balada mais liberal de Berlim, onde o dress code é usar roupas de baixo, o sexo é liberado e a música tem fama de boa, se é que alguém vai lá para dançar

Por Carolina Guerra, de Berlim

Em uma madrugada de sábado, no rigoroso inverno de Berlim no qual os termômetros marcam cinco graus negativos, uma tenda vermelha, levemente ofuscada pela neblina, passa despercebida por quem não sabe para onde vai. Eu e meu companheiro alemão, que topou ver de perto uma das discotecas mais famosas e liberais da cidade, cruzamos a tenda e encontramos uma porta fechada. Um homem aparece após a primeira batida.

– “Estamos no lugar certo?”, pergunta meu amigo.
–“Depende do que vocês estão procurando”, responde o homem postado na porta.
–“Procuramos pelo KitKatClub”.
–“Sim, é aqui. Mas o que vocês têm para mostrar? Algum traje em couro? Látex? Uma fantasia ou algo criativo? Não aceitamos jeans nem tênis”, diz o homem olhando nossas roupas de inverno.
–“É… bom, a minha companheira pretende ficar de top e calcinha e eu, de cueca boxer”.
–“Hum… Não sei. Vou checar se vocês podem entrar”.

Uma mulher sai à porta, nos observa da cabeça aos pés e finalmente libera a nossa entrada. São 10 euros por cabeça. Logo na recepção, um quadro de arte erótica de uma Virgem Maria com os seios à mostra nos dá o tom do que vamos encontrar. No salão mais à frente, vemos uma Santa Ceia em forma de suruba generalizada. O local, definitivamente, não é para religiosos. Na chapelaria, um vaivém de gente tirando roupa para entrar e se vestindo para sair. Há uma multidão de mulheres com lingeries a la dominatrix. Outras usam fantasias com tiras de couro cobrindo todo o corpo do alto de sandálias com salto agulha. O fetiche está por todos os lados: enfermeiras, bailarinas, homens sem camisa, de cueca, e até pessoas completamente nuas. As idades variam. Há garotas com cara de universitárias, jovens na casa dos 30 anos e até os com mais de 50 anos. Chega a minha hora de tirar a roupa. Para tentar me sentir à vontade, planejei algo um pouco mais conservador do que os trajes que eu usaria em uma praia no Brasil. Mesmo assim, nos primeiros minutos, fui acometida por um leve desconforto por estar exposta. Sentamos no bar. O barman, que usa dois chifres no lugar onde deveriam estar seus mamilos (um aparato descartável, segundo ele), nos serve uma taça de vinho. Logo me senti apenas mais uma na multidão.

O clima é tranquilo, tudo muito à vontade e, apesar de algumas fantasias curiosas, ninguém ri de ninguém. As pessoas que estão lá, em sua maioria, procuram dançar e se divertir. Poucos parecem marinheiros de primeira viagem. Uma garota jovem, dona de uma voz suave, nos aborda. Pergunta se queremos comprar chicotes. “Tenho de vários tipos e causam diferentes reações. Eu mesma os faço com borracha reciclada de pneus de bicicleta. Além de divertidos, também apoiam a sustentabilidade.” Não estamos interessados. Mas a moça deixa seu e-mail, caso mudemos de ideia.

Resolvemos então olhar a pista de dança. O trance psicodélico rola solto em dois ambientes. No primeiro, maior, há duas barras para pole dance, sempre ocupadas por tipos que gostam de fazer um show improvisado. Ali, de um lado, duas morenas de calcinha e sutiã dançam de um jeito lascivo, rodopiam, se esfregam na barra e por vezes se beijam. Já do outro lado, um travesti com seus 50 anos, de cabelos loiros e longos, e um biquíni minúsculo também faz a sua exibição. O nome da festa, é bom lembrar, é CarneBall Bizarre. Já a segunda pista, metade do tamanho da primeira, concentra um grande número de homens. Provavelmente porque é lá que está a entrada para uma sala não tão escura, onde os gays se aglomeram e se permitem fazer o que bem entendem. Apesar da rigidez do homem da porta, havia também algumas pessoas de tênis e calça jeans, outras de terno (teve um que arriscou um smoking e passou) e garotas de vestidos bem normais. É possível que sejam conhecidas do dono, o austríaco Simon Thaur.


O idealizador do KitKatClub é um excêntrico por excelência. Nascido em um pequeno vilarejo na região do Tirol, deixou a Áustria aos 17 anos para conhecer o mundo. Seu sonho era ser músico, mas virou pornógrafo, astrólogo, diretor de filmes pornô e eventualmente dono de boate. Conheceu muitos países da Europa, Ásia e África. Nos tempos difíceis, chegou a tocar guitarra nas ruas para sobreviver – como fez em suas passagens pela Grécia e pelo Japão. “Nunca trabalhei em minha vida. Sempre tenho alguma ideia e a coloco em prática”, conta ele, em um inglês carregado de sotaque alemão. Não é difícil encontrá-lo no KitKat. Trata-se de um tipo entre 40 e 50 anos, magro, cabelo raspado. Na noite em que o vi, estava sem camisa, fumando um cigarro enquanto conversava com conhecidos. Thaur foi à Índia mais de cinco vezes e, entre uma visita e outra, desenvolveu um método próprio de mapa astral. “O problema de muitas pessoas acontece quando Urano está em Áries. É uma energia muito forte que pede por transformação”, diz Thaur. Ele diz ter cinco livros escritos, mas não publicados, sobre o tema. Como diretor de cinema, afirma ter feito mais de 80 filmes em dez anos, entre 1997 e 2007, todos eles um tanto artísticos, por assim dizer.

Outra de suas aventuras inclui uma estadia de dois anos em um apartamento em Zurique, na Suíça, que era uma espécie de comunidade hippie, onde o sexo em grupo era rotina. “Foi uma época em que testei muitos valores, como o ciúme”, conta. Em 1994, foi para Berlim com a então namorada e abriu o KitKatClub, um clube de fetiche e música eletrônica. Antes disso, promoveu festas como as que acontecem hoje no KitKat e realizou pequenos testes de reação de público com sua namorada. Eles iam a bares e restaurantes comuns e ficavam nus para ver o que as pessoas diriam ou fariam. “Na maioria das vezes foi muito positivo. Nunca tive muitos problemas com isso.”

Logo no começo, o KitKat teve de mudar de local, já que seu primeiro endereço era no distrito de Tempelhof, onde os moradores estranharam o novo vizinho – moderno demais para os padrões do lugar. Depois de algumas mudanças, o KitKat hoje está pousado no distrito de Mitte, na região central e perto de outras discotecas como Tresor, que ajudaram a compor a história da cena techno que se desenvolveu em Berlim nos anos 1990. “Acredito que, se a polícia quisesse, eles poderiam fechar o meu clube. Mas acho que eles estão ocupados demais para se importar com o que fazemos.”
  

A única regra oficial do KitKatClub é “Faça o que quiser, mas mantenha a comunicação”. A margem de interpretações para a frase é grande. A discoteca acaba sendo um lugar no qual as pessoas se permitem realizar suas fantasias. Lá, elas querem se mostrar e ver os outros. O exibicionismo é parte importante do jogo. Não há prostitutas e tampouco é um clube de swing. Claro, tudo isso pode acontecer, dependendo do que e de quem se encontra por lá. As palavras-chave, porém, estão mais para liberdade e ausência de julgamento. Apesar de o sexo ser liberado, não vi ninguém chegando nos finalmentes por ali. Dizem que as orgias do passado eram mais pesadas que as de hoje, assim como dizem que sábado é o melhor dia para ir ao KitKat e depois da duas da manhã é quando a noite começa a esquentar. Eu, como repórter, vi um mundo que não era o meu. Entrei, olhei, dancei e até me diverti. Mas quando achei que deu a hora, discretamente, peguei meus casacos na chapelaria e saí.

O KitKat é um lugar onde as pessoas gostam de se mostrar e ver os outros.
 Há desde pessoas que vão fantasiadas até as que ficam nuas

Texto e imagens reproduzidos do site: revistastatus.com.br

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