Anne Quiangala, que não tem medo de dizer que é 'ok ser
mulher, negra e nerd'
"Se você coloca ‘nerd’ no Google a imagem não vai ser
de qualquer mulher negra nerd."
By RYOT Studio e CUBOCC
Preta, Nerd & Burning Hell. Este é o nome. Anne
Quiangala, 28 anos, gosta disso. Cria vocabulário. E conteúdo, discussões,
críticas, análises, referências. “Eu acho que o vocabulário é o que define o
que a gente é capaz de fazer e ser. Por isso preta e nerd. Se você coloca
‘nerd’ no Google a imagem não vai ser de qualquer mulher negra nerd. Então quer
dizer que não existe. E quando crio ‘preta e nerd’ existe um nome para isso, eu
existo. Porque senão parece que não é o seu lugar”. Foi como ela se sentiu por
muito tempo, na verdade.
Nascida no Espírito Santo em uma família de meninos, conta
que sempre foi nerd e que gostava desde cedo das ditas “coisas de menino”. No
entanto, sentia um estranhamento e falta de encaixe nos lugares. “Me
identificava com isso e era meio esquisito. Cultura nerd tem muito a ver com
consumo e eu nunca me dizia nerd. É um desconforto, como se ser nerd fosse uma
coisa para brancos”. Porque, como explicou, não existia esse vocabulário para
ela: negra e nerd. Mas é algo que ela sempre foi.
Após anos de estranhamento em diversos ambientes, ela criou
um local em que pudesse se afirmar: o blog.
Desde pequena, é fã de quadrinhos, cultura pop, vídeo game,
o pacote todo. Começou a jogar aos cinco e somente aos nove anos conheceu a
primeira menina que também jogava. Pode, assim, migrar dos ambientes hostis de
fliperama para jogar em casa. Uma grande conquista. E essa foi somente uma das
situações que viveu para poder ser quem ela é. “Entrar em uma loja de
quadrinhos é um constrangimento, acham que você não tem dinheiro para comprar.
Você é negra, então você não pode ser nerd. Você vai comprar um quadrinho e vai
aparece um cara branco te explicando o que é esse quadrinho que você compra
toda mês. É um ambiente muito hostil”.
Após anos desse sentimento de estranhamento em diversos
ambientes, ela criou um local em que pudesse se afirmar. Antes, quando estava
em grupos de pessoas negras, por exemplo, ela era “nerd demais” para estar ali.
“E me feria, como se para estar em alguns grupos eu tivesse que tirar um pedaço
do corpo. Porque é quem você é. Identidade é uma coisa complicada, porque não
necessariamente as pessoas veem, então era muito desconfortável ser negras em
todas as situações, para além do racismo. Eu ficava pensando se era ok isso. Eu
era diferente de quem parecia comigo e isso não parecia ok. A pessoa compra,
assiste os filmes e não se sente confortável para dizer que é nerd?”
Entrar em uma loja de quadrinhos é um constrangimento, acham
que você não tem dinheiro para comprar. Você é negra, então você não pode ser
nerd.
Assim surgiu o blog. Ela viu uma oportunidade de discutir
assuntos ligados a sua experiência pessoal como nerd e às informações de seus
trabalhos de pesquisa que desenvolveu na faculdade de Literatura e que se
preparava para estudar em seu mestrado – sempre com questões ligadas à cultura
nerd e cultura pop. “No dia que eu fiz o blog falei: é isso. Vesti a manta e
era isso mesmo. O blog veio dessa junção de uma questão acadêmica de fazer
circular essa lógica e uma decisão muito pessoal também de fincar minha
identidade de que eu sou negra e nerd e de que isso existe. Para mim foi um
marco”.
Assim, quando entrou no mestrado, em 2014, viu a
oportunidade de levar suas questões de pesquisa para um espaço fora da academia
e, ao mesmo tempo, expor também suas experiências de desconforto inclusive no
ambiente da universidade. “Eu gosto de cultura pop e tudo mais, mas eu era a
pessoa que chegava no primeiro dia de aula e tinha lido os textos. E é
desconfortável lidar com alunos que são muito interessados”.
O blog veio dessa junção de uma questão acadêmica e uma
decisão muito pessoal de fincar minha identidade de que eu sou negra e nerd e
de que isso existe.
E isso ela sempre foi. Na graduação, realizou vários Pibic
(Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica) porque tinha gosto
por estudar e pesquisar. Além disso, sabe que sempre fez um esforço maior do
que a maioria das pessoas. “Não era a única jovem [no mestrado], mas era negra,
mulher e nova. Nem me achava tão jovem, eu tinha 24 anos, mas nesse contexto eu
era. Sempre fui boa aluna porque, óbvio, tinha que fazer 30 vezes mais que todo
mundo. Não é senso de superioridade, mas é um esforço além que você faz durante
uma vida inteira. E isso não necessariamente vai gerar frutos, mas no fim das
contas eu consegui chegar aonde eu cheguei muito por causa disso”.
Aos poucos, foi vendo que realmente gerou frutos e que o
alcance de seu trabalho era grande. Deu aula no Ensino Médio e pode ser
referência de outras garotas nerds e outras garotas negras, e outras garotas
negras e nerds. Hoje, o blog, que começou como um projeto individual, cresceu e
tem uma equipe de produção. O vocabulário chegou a muita gente. “Achei que o
blog ia ser uma forma de mostrar para pessoas iguais a mim que não tiveram os
mesmos acessos e vantagens que eu tive, de que é possível, é acessível. Acho
bom fincar o pé no chão de que existe, porque aí, a medida que existe, várias
pessoas se sentem confortáveis para se identificar”.
Achei que o blog ia ser uma forma de mostrar para pessoas
iguais a mim que não tiveram os mesmos acessos e vantagens que eu tive, de que
é possível, é acessível.
Várias pessoas se sentem confortáveis para ser. E parte do
objetivo é ter uma abordagem diversificada sobre a questão e os pontos que
envolvem a cultura nerd. “Acham que cultura nerd é para criança e o adulto que
gosta é infantilizado e acho que podemos desconstruir isso... não é para rico,
não é só para jovem e adolescente”. Toda a atuação de Anne leva em consideração
esse olhar simultâneo para recortes de raça, gênero e classe. “Acho que hoje em
dia a gente tem essa concepção que a interseccionalidade é muito necessária e
precisamos disso, então com esse vocabulário real a gente consegue
concretizar”.
Ela faz a sua parte. E comemora os avanços e os resultados.
“Consegui com o tempo ter retornos muito legais de pessoas negras falando que
agora se identificaram com o termo. Acho que cada vez mais tenho estudado e
tenho vislumbrado um futuro de abranger e mostrar que é ok ser uma mulher,
negra e nerd”.
É mais do que ok. É algo que existe. Com vocabulário, cor
cara e significado.
Texto e imagem reproduzidos do site: huffpostbrasil.com
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