Karina Fukumitsu é a 281ª entrevistada do "Todo Dia
Delas",
um projeto editorial do HuffPost Brasil.
CAROLINE LIMA/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL
Publicado originalmente no site HuffPost Brasil, em 12/12/2018
Karina Fukumitsu, a especialista em prevenção do suicídio
que promove esperança
A “educadora dos pés descalços” lidou por anos com o tema em
sua família e quer tratar do assunto com respeito: “Quero mostrar que sempre
tem vida e se tem vida, tem jeito”
By RYOT Studio e CUBOCC
Calcula que já fez mais de 14.500. Chega a esse número
baseada na quantidade de pacotinhos de papel para origami que já comprou. Cada
um vem com mil quadradinhos. Entre suas atividades, leituras, durante uma
conversa mesmo, ela deixa os dedos passearem sobre o delicado papel e dá forma
ao tsuru, tradicional pássaro japonês. A lenda diz que a cada mil tsurus feitos
o seu desejo pode ser realizado. "Falam que é o pássaro da felicidade, da
esperança, da longevidade. Gosto de apresentar como o pássaro da
esperança", conta Karina Fukumitsu, 47 anos, psicóloga especializada em prevenção
do suicídio. A contagem começou em 2006 quando sua mãe ficou doente e passou
por 18 internações. Nesse período, fez os mil e distribuía para médicos e
enfermeiros enquanto ficava com a mãe. Alguns anos depois, foi Karina quem
passou uma temporada no hospital e retomou a produção.
"Às vezes me pergunto por que deus não me tirou a vida
naquele momento e
talvez seja para isso: mostrar que sempre tem vida e se tem
vida, tem jeito".
Hoje, virou mais uma de suas marcas registradas. Em toda
palestra que vai leva seus tsurus para distribuir. Fora isso, entra no palco
descalça, hábito que se iniciou também após esse período em que adoeceu.
"A educadora dos pés descalços começou a ser apresentada depois que eu
tive uma inflamação cerebral e para mim foi o que eu chamo de tsunami
existencial e fiz uma promessa, uma barganha com deus que se ele me oferecesse
mais bônus de tempo e se ele me desse a condição de ficar em pé de novo e
lembrando dos conhecimentos que eu tinha estudado até então, eu faria
descalça". Assim foi. Há quatro anos é como ela se apresenta. Descalça e
sempre com seus tsurus. "Todas as vezes que eu entro em solo sagrado -
salas de aula, consultório de psicologia e palestras – eu entro descalça. Sou
conhecida assim inclusive para reverenciar a vida, pela vida e é um jeito de eu
levar esperança. Um jeito de trabalhar com prevenção ao suicídio é levar esperança
para as pessoas".
Esse é o trabalho de Karina há praticamente sua vida
inteira. Estudiosa da suicidologia e com foco no trabalho de prevenção,
posvenção e acolhimento da vida, como define sua atuação, é autora de livros e
pós-doutora no assunto. Mas sua relação com o tema começou muito antes da vida
acadêmica. "Desde os meus 10 anos tenho essa experiência pessoal porque
minha mãe tentava suicídio. E eu e minha irmã, dois anos mais velha, salvamos
minha mãe das várias tentativas". Nessas frequentes idas ao hospital,
Karina começou a observar a postura de profissionais e soube que queria fazer
algo para mudar isso. "A gente recebia comentários de profissionais que
considero que não são da saúde, são da doença. Diziam para a minha mãe: 'Da
próxima vez tente de um jeito mais efetivo para que a gente não perca tempo com
a senhora que insiste em tentar se matar'. Nesse momento eu jurei para mim que
ia ser uma profissional da saúde e resolvi estudar psicologia com esse
objetivo".
A fênix e a árvore da vida, símbolos tão presentes na vida
de Karina que
considera que renasceu das cinzas após descobrir doença rara.
Foi o que fez. Na época em que iniciou os estudos o assunto
era muito pouco abordado, inclusive na faculdade – hoje ela avalia que isso
melhorou, mas ainda há alguns tabus com o tema. Mas, mesmo assim, sabia que
queira se especializar nessa área e seguiu em frente. Fez mestrado fora do
país, intensificou seus conhecimentos e levantou essa bandeira como militante
mesmo. "Resolvo escrever um livro em 2005 porque foi essa a última vez que
minha mãe falou de suicídio. Eu estava grávida daquele que seria meu primeiro
filho e ela fala que queria se matar e eu falei para ela ter calma, disse que
ela já tinha tentado várias vezes e que a hora da morte dela ia chegar, assim
como chegará para todos nós. Quando eu falei isso, senti uma pontada e abortei.
E esse paradoxo entre vida e morte me fez pensar que eu precisava escrever
sobre esse tema". Sua mãe ficou sabendo do que havia ocorrido com a
gravidez da filha e abraçou o projeto. "Ela me disse que eu já tinha
perdido muito e que ela ia ser militante comigo. Minha mãe virou coautora do
livro e no lançamento estava comigo, do meu lado".
Fora esse, Karina publicou outros livros autorais, além de
ter participado da organização de muitos outros. Mas nunca foi um trabalho
fácil. No meio disso, a mãe de Karina adoeceu e, como em outros momentos de sua
vida, o lado pessoal e profissional andaram juntos. "Resolvi mudar de foco
de trabalho e comecei a ter um interesse em estudar o luto por suicídio. Entro
no doutorado com esse tema e minha mãe morre em fevereiro e a minha defesa era
em maio. Eu visceralmente vivi esse processo de luto, não de alguém que se
matou, mas foi por causa dela que virei suicidologista".
Considero que ressurgi das cinzas porque eu tenho essa
crença de que precisamos valorizar nossa vida.
Ela prefere distribuir sua dedicação em forma de dobradura,
com tsurus.
Depois disso tudo, Karina ainda passou por uma grave doença
que também gerou essa vivência visceral. Entrou às pressas no hospital com
suspeita de esclerose múltipla. Estava com Aden, uma doença inflamatória rara
que afeta o sistema nervoso e causa, entre outras coisas, perda de movimento.
"Foi um tsunami na minha vida. Meus filhos estavam com 7 e 9 anos na época
e eu fiquei pensando como eles iam me conhecer, saber da minha história. No
hospital, tive ideias suicidas, achava que não ia dar conta de tudo, precisei
identificar o que eu chamo de processo de morrência em mim. Às vezes quando
estamos desesperados a gente pensa na morte com possibilidade, mas estou aqui.
Considero que ressurgi das cinzas exatamente porque eu tenho essa crença de que
precisamos valorizar nossa vida, nossa existência, cada obstáculo que a gente
passa é uma superação".
Com a ideia de passar sua história aos filhos, Karina
resolveu fazer uma autobiografia e começou a gravar breves depoimentos em seu
celular no hospital mesmo e foi uma atividade que a motivou bastante. Quando
teve alta, já em casa, começou a se dedicar a organizar tudo que tinha
produzido. "O livro foi minha salvação psíquica. Às vezes me pergunto por
que deus não me tirou a vida naquele momento e talvez seja para isso: mostrar
que sempre tem vida e se tem vida, tem jeito".
Ela trabalha para levar informação, acolher quem passa por
isso
e lidar com a situação de forma respeitosa. Com a vivência visceral da doença,
Karina encontrou a cura para si -- e quer contar o segredo a outras pessoas.
CAROLINE LIMA/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL
Recuperou-se e conseguiu retomar o seu pós-doutorado,
finalizado em 2017. Hoje, segue com seu trabalho e vê mudanças na área. Uma de
suas atividades, aliás, está ligada a algo novo. Karina trabalha o tema em
escolas. "Hoje está escancaradamente aumentado o número de suicídios,
principalmente de crianças e adolescentes, algo que é chocante. Sempre existiu
uma ideia de que o suicídio era contagioso e não podia falar sobre isso na
imprensa tanto é que quanto publiquei o livro em 2005 tive três recusas
editoriais. Uma delas me falou que não tinha valor mercadológico. Mas existem
suicídios acontecendo, acredito que quanto mais a gente nega o que está
acontecendo, pior, porque você cria uma perturbação. Negar algo que está na sua
cara e todo mundo sabe causa mais adoecimento".
Assim, ela trabalha há tantos anos para discutir o assunto,
levar informação, acolher quem passa por isso e lidar com a situação de forma
respeitosa. "Um teórico que eu estudo fala que o suicídio é um ato
definitivo para um problema temporário. Meu trabalho é de acolhimento à vida, é
para que as pessoas não se autodestruam. Se não soubermos olhar para nossa ferida,
que é o que eu chamo de extrair flor de pedra, como você vai tirar uma lição do
seu sofrimento?"
A gente que precisa se apropriar da nossa
história, a gente
é superação.
E Karina tirou muitas lições de suas dores e de suas perdas.
"Hoje eu entendo que a partir do meu adoecimento eu tive a compreensão de
que a gente não pode fugir da nossa história, a gente tem que reverenciar com
os pés descalços, os dois pés no chão, nossa vida que é única e não é o outro
que vai fazer por nós, é a gente que precisa se apropriar da nossa história, a
gente é superação. É isso que me ajuda. A psicologia me salvou como
existência".
Por isso continua tão empenhada. É por ela, também, mas é
para ajudar os outros. É o que ela procura fazer em todas as suas atividades
porque além dessas linhas profissionais todas, Karina faz trabalho voluntário
em hospitais como palhaça. Lá, escolheu um nome japonês. Kibô. "Significa
esperança. Levo tsurus para os pacientes e levo essa esperança para as pessoas
continuarem a trajetória delas".
Kibô, a palhaça da esperança. Hoje, com os 14.500 tsurus feitos,
já pode pedir a realização de alguns desejos. Mas ela prefere distribuir sua
dedicação em forma de dobradura. Desse jeito, chega a mais pessoas. Pelo menos,
é o ela que espera.
Texto e imagens reproduzidos do site: huffpostbrasil.com
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